sexta-feira, 24 de maio de 2019

Vai ser bonita a festa, pá

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Que Pai Camões, Chico, te abençoe e guarde!
Autor de 500 músicas, 8 livros, 5 peças, 49 discos, enfim, de uma obra de altíssima qualidade e criatividade.
Autor de 500 músicas, 8 livros, 5 peças, 49 discos, enfim, de uma obra de altíssima qualidade e criatividade. (Bob Wolfenson/Divulgação)
Por Eleonora Santa Rosa*

Já lhe dei meu corpo, minha alegria

Já estanquei meu sangue quando fervia

Olha a voz que me resta

Olha a veia que salta

Olha a gota que falta pro desfecho da festa

Por favor

Deixe em paz meu coração

Que ele é um pote até aqui de mágoa

E qualquer desatenção, faça não

Pode ser a gota d'água

***

Bárbara, Bárbara

Nunca é tarde, nunca é demais

Onde estou, onde estás

Meu amor, vem me buscar

O meu destino é caminhar assim

Desesperada e nua

Sabendo que no fim da noite serei tua

Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva

Acumulando de prazeres teu leito de viúva

***

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido


Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima



Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

***

Foi bonita a festa, pá

Fiquei contente

Ainda guardo renitente um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá

Mas certamente

Esqueceram uma semente em algum canto de jardim

Sei que há léguas a nós separar

Tanto mar, tanto mar

Sei também quanto é preciso, pá

Navegar, navegar

***

Vai passar nessa avenida um samba popular

Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar

Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais

Que aqui sangraram pelos nossos pés

Que aqui sambaram nossos ancestrais

No tempo, página infeliz da nossa história

Passagem desbotada na memória das nossas novas gerações

Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída

Sem perceber que era subtraída

Em tenebrosas transações

Seus filhos, erravam cegos pelo continente

Levavam pedras feito penitentes

Erguendo estranhas catedrais

E um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz

Uma ofegante epidemia, que se chamava carnaval

O carnaval, o carnaval

Vai passar

Francisco Buarque de Hollanda, escritor, dramaturgo, compositor, cantor, acaba de ser laureado com o Prêmio Camões, o maior e mais importante galardão da Língua Portuguesa. Autor de 500 músicas, 8 livros, 5 peças, 49 discos, enfim, de uma obra de altíssima qualidade e criatividade, construiu um legado extraordinário, considerado patrimônio literário e cultural da nossa Língua. Motivo de júbilo e celebração o reconhecimento merecido a um criador de primeira linha, que honra e transforma a cultura brasileira.

Que Pai Camões, Chico, te abençoe e guarde!

Evoé, Chico Buarque!

*Jornalista

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