quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Cracolândia: seis meses após ação, usuários e funcionários reclamam de precarização no atendimento

Profissionais de entidades que atuam na região apontam retrocesso com programa Redenção. Coordenador do projeto de Doria rebate críticas e vê avanços.
Por Lívia Machado, G1 SP, São Paulo
23/11/2017 07h27  Atualizado há 1 hora
Usuários dormindo em chão e em mesas da antiga tenda do programa Braços Abertos  (Foto: Arquivo Pessoal )
Usuários dormindo em chão e em mesas da antiga tenda do programa Braços Abertos (Foto: Arquivo Pessoal )

Seis meses após o prefeito João Doria (PSDB) anunciar o "fim da Cracolândia", no Centro de São Paulo, usuários e funcionários de entidades que atuam no local relatam precarização dos serviços e descrença no Redenção, programa implementado pela atual gestão no final de maio para combater o uso de drogas na região.
“Esse programa não existe, é uma ilusão”, disse ao G1 uma funcionária que prefere não se identificar.
Os profissionais afirmam que as transformações urbanas que a Prefeitura deseja fazer na área por meio do projeto são bastante claras, mas o que se pretende com o Redenção, é higienista e limitado.
“É um retrocesso, apenas traz a internação como o único meio de tratamento. As pessoas são internadas e entregues à própria sorte, a sua condição de morador de rua”, complementa. "Falam de redução de danos, mas é uma coisa que você vê que é higienista", aponta outro funcionário.
Coordenador do programa, o psiquiatra Arthur Guerra, especialista no tratamento de pacientes com abusos de substância como o álcool e drogas, contesta tais afirmações. Ele defende o modelo em vigor, elogia a proposta oferecida pelo ex-prefeito Fernando Haddad (PT) e diz que ela não foi extinta, mas adaptada.
"As equipes dos Caps (Centro de Atenção Psicossocial) trabalham primordialmente com a ideia de redução de danos. São quase 500 pessoas que foram entre aspas herdadas por mim do programa da gestão anterior, que tem um modelo de funcionamento basicamente voltado para redução de danos. É um modelo que é respeitado, é um modelo que nós gostamos, mas que deve ser perguntado para o paciente se ele quer usar. Da mesma forma, para os mais graves, e que os que têm o desejo de parar [com o uso da droga], temos um outro modelo, que é o da desintoxicação. Os dois modelos trabalhando em conjunto, de forma complementar. Existem os dois braços", disse Guerra ao G1 por telefone.

O começo
A forma como o programa foi iniciado, através de uma ação policial na madrugada do dia 21 de maio, ainda repercute negativamente no local. Trabalhadores relatam dificuldade na criação de vínculo e aceitação da política pública. Usuários temem a violência da Polícia Militar e da Guarda Municipal.
"Está horrível de trabalhar. A abordagem ficou muito mais difícil, as pessoas estão mais agressivas, os funcionários estão sofrendo bastante com isso", afirma funcionário.
Guerra preferiu não opinar sobre esse ponto porque assumiu o projeto mais de 30 dias depois da intervenção policial. “Quando houve aquela ação da polícia eu não estava no programa ainda, não tinha sido convidado, é complicado avaliar. De fato, é um cenário, um ambiente muito pouco salutar, é um ambiente difícil. Tem seus códigos próprios. Onde a atividade médica é permitida até um certo limite.”
Questionado sobre o propósito do Redenção da forma como está sendo desenvolvido, ele afirma que deseja "dar um pouco mais de dignidade" à essa população e diz não enfrentar limitação de recursos tampouco capital humano para tal fim.
"Eu vivo em um cenário onde não há limitação de recursos financeiros, não há limitação de recursos humanos, não tenho nenhuma situação de controle das minhas atividades do ponto de vista profissional, quer dizer, eu tenho carta branca para fazer o que deve ser melhor feito. Tenho 19 entidades que estão fiscalizando minhas ações. No começo achei que essas fiscalizações poderiam ser muito antipáticas, mas hoje sou obrigado a admitir que muitas delas são pertinentes, tomo essas entidades não como inimigas, mas como parceiras."
Atendimento médico
Usuários ouvidos pelo G1 afirmam que os atendimentos dos agentes de saúde, enfermeiros e médicos também foram praticamente cessados, mas Prefeitura diz que há em "excesso". A equipe, que antes circulava pela área fazendo o encaminhamento médico, hoje só presta serviço quando acionada.

O gestor do programa nega a ausência de tais profissionais no local. Segundo Guerra, a equipe médica foi retirada da tenda criada na gestão anterior e agora atende em um imóvel na Praça Princesa Isabel.
"A informação que nós temos é exatamente o contrário. É que há equipe em excesso, e até ociosos. Tanto que nós pretendemos dar outras atividades porque eles estão em número excessivo no território. Coloquei os médicos lá na Praça Princesa Isabel, não quis mais que tivesse o modelo que tinha anteriormente, a tenda, que não é mais ligada à saúde, é ligada à assistência social, porque aquilo não era uma área de tratamento, de cuidados."
E diz ser constante a presença de profissionais do "Consultório na Rua" no chamado "fluxo", local de maior concentração de usuários.
"No fluxo nós temos nove equipes atuando, cada equipe com oito pessoas. Essas pessoas fazem abordagem, mas evidentemente no fluxo as pessoas não vão fazer tratamento médico. No fluxo tem a abordagem e a solicitação de encaminhamento para o nosso posto, para o consultório de verdade."
Guerra também afirma que os encaminhamentos estão sendo feitos, e que há vagas nos 26 Caps AD (Álcool e Drogas) da capital e nos hospitais psiquiátricos conveniados com a Prefeitura. "Sim, nós temos vagas, não são excessivas, mas de cada 4 vagas, nós temos três ocupadas."
Grupo protestou contra ações da gestão municipal na Cracolândia na tarde desta terça (21) (Foto: Arquivo Pessoal ) Grupo protestou contra ações da gestão municipal na Cracolândia na tarde desta terça (21) (Foto: Arquivo Pessoal )
Grupo protestou contra ações da gestão municipal na Cracolândia na tarde desta terça (21) (Foto: Arquivo Pessoal )
Grupo protestou contra ações da gestão municipal na Cracolândia na tarde desta terça (21) (Foto: Arquivo Pessoal )

Furtos
A tenda na Rua Helvétia, que na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad oferecia atividades de lazer, banho e espaço para descanso aos beneficiários do Programa Braços Abertos, foi incorporada à estrutura do Atendimento Diário Emergencial (Atende) II, inaugurado em julho.
Segundo os profissionais, o espaço segue constantemente sujo, sofrendo saques por falta de controle da circulação no local. Colchões e torneiras foram furtados, e não há reparos. É possível ver pessoas dormindo no chão e em cima das mesas diariamente.
Em nota, a Prefeitura afirma que em relação aos furtos no Atende II, novas torneiras e colchões foram providenciados para substituição. "Cabe ressaltar que os conviventes pernoitam em camas nas áreas internas do equipamento, porém, utilizam o espaço externo para descanso durante o dia."


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