quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Filhos de sacerdotes: realidade silenciada que pode afetar cerca de 4.000 pessoas

domtotal.com
Os bispos irlandeses são pioneiros na implementação de medidas para "garantir o bem-estar" de mães e filhos.
Milhares de crianças nascidas de sacerdotes que tiveram que viver no segredo, na vergonha, na ilegitimidade, na rejeição ou no abandono.
Milhares de crianças nascidas de sacerdotes que tiveram que viver no segredo, na vergonha, na ilegitimidade, na rejeição ou no abandono. (Reprodução).

Quase um sacerdote em cada três não cumpre o celibato, de acordo com uma pesquisa recentemente realizada pelo The Boston Globe, que aborda a difícil questão dos filhos dos clérigos. Uma delas aponta para um desafio chocante: "Se apenas 1% dos 400.000 sacerdotes do mundo tivessem filhos, haveria pelo menos 4.000 pessoas que talvez poderiam precisar de ajuda emocional, e de todo tipo, por parte da Igreja".

Cada uma das histórias apresentadas pelo The Boston Globe é trágica. Mas talvez o mais impressionante dessas histórias difíceis é o grande número: milhares de crianças nascidas de sacerdotes que tiveram que viver no segredo, na vergonha, na ilegitimidade, na rejeição ou no abandono, aponta Infobae.

"Ninguém pode saber o número exato, porém, contam-se mais de 400 mil sacerdotes em todo o mundo, muitos deles inconsistentes com a promessa de celibato. Nesta situação, o potencial para crianças não planejadas é brutal", escreveu Michael Rezendes no relatório especial do jornal de Massachusetts, publicado na seção Spotlight com fotos de Suzanne Kreiter e vídeos de Emily Zendten.

De acordo com as estimativas do filho de um sacerdote que fundou a Coping International - "uma organização de voluntários para a saúde mental que promove o bem-estar dos filhos dos sacerdotes católicos e suas famílias no mundo" - Vincent Doyle assinala que: se apenas 1% desses 400.000 sacerdotes tinham um filho, "haveria pelo menos 4.000 filhos e filhas de sacerdotes que talvez precisassem de ajuda emocional e outros tipos de ajuda por parte da Igreja".

O fenômeno tem sido tão silencioso que um livro de quase três décadas atrás: A Secret World, escrito por A.W. Richard Sipe, continua sendo o principal estudo sobre o celibato eclesiástico. No livro é apontado que 30% do clero católico tem relações sexuais regulares ou ocasionais com mulheres, enquanto aproximadamente 50% cumprem a promessa de permanecer no celibato.

Um dos casos destacados pelo The Boston Globe é o de Jim Graham, que durante décadas se perguntou por que seu pai, John Graham, o tratava tão friamente, enquanto com suas irmãs ele era mais afetuoso.

Ele tinha 48 anos quando confrontou seus tios Kathryn e Otto, que finalmente lhe mostraram um recorte de jornais onde ele viu um homem extremamente parecido com ele com um colar branco de clérigo. "Só os protagonistas sabem com certeza", disse a mulher, "mas é possível que este seja teu pai".

A foto correspondia ao obituário do Reverendo Thomas Sullivan. Naquele momento, Graham olhou com um olhar diferente para o homem que o criou, que teve um divórcio tortuoso com sua mãe - ele provou, como mais tarde se soube, a infidelidade da mulher com o sacerdote - e obteve a custódia dos três filhos. "Para ele, eu devo ter sido uma lembrança constante do homem que roubou sua esposa", disse ele a Rezendes.

"Os filhos e filhas dos sacerdotes muitas vezes crescem sem o amor e apoio de seus pais, e muitas vezes são pressionados ou forçados a manterem o segredo da existência desse relacionamento", escreveu o jornalista. "Eles são as vítimas infelizes de uma igreja que por quase 900 anos proibiu seus sacerdotes se casarem ou fazerem sexo, mas nunca estabeleceu padrões para o que os sacerdotes e bispos devem fazer quando um clérigo é o pai de uma criança".

Nem o Vaticano tomou provisões para o apoio financeiro ou emocional de mães e filhos nesses casos. Desta forma, cada indivíduo trata seu caso como uma crise pessoal.

Alguns sacerdotes falam a verdade para seus filhos e filhas. Mas outros não. Particularmente entre as crianças recebidas em adoção, podendo crescer sem conhecerem a identidade de seus pais biológicos.

Quando as crianças conhecem sua identidade como filhos de sacerdotes desde a infância, a ferida emocional é profunda. "Tudo o que eu queria era que ele me levasse para tomar sorvete e dissesse em público: ‘Estou tão orgulhoso da minha filha’, falou Chiara Villar, uma mulher de 36 anos que morava nos arredores de Toronto, assim o disse ao The Boston Globe. Ela nasceu quando sua mãe, Maria Mercedes Douglas, acompanhou seu pai, o padre Anthony Inneo, na sua missão paroquial.

"Eu me perguntei por que ele não poderia ser meu pai. Eu comecei a culpar-me", a mulher lembrou sua infância cheia de sentimentos de indignidade e vergonha, e ferimentos como os cortes que ela costumava fazer em si mesma.

Villar passou seus primeiros anos felizes com um homem que ela chamou de "Papai". Mas quando ela começou a ir para o jardim de infância eles explicaram que era um segredo e que, se alguém lhe perguntasse, ela precisaria identificá-lo como seu tio.

"A portas fechadas era meu pai, mas de repente, enquanto caminhava para o carro da minha mãe, ela dizia: ‘Ok, Chiara, que Deus te abençoe’. Ela era como o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde", lembrou a mulher na entrevista.

Ora soubessem disso na infância ora o descobrissem de adultos, os filhos dos sacerdotes, em sua maior parte, sofreram por terem padecido esse destino.

"Para muitos, a verdade os quebrou, e seus sentimentos de desilusão e abandono podem levar a vidas marcadas por relacionamentos quebrados, abuso de substâncias e pensamentos suicidas", escreveu Rezendes. "Muitos ficam com a fé ressentida na igreja, reconhecendo que uma instituição considerada um farol da verdade moral permitiu, ou deixou acontecer que os clérigos tenham filhos e evadam as responsabilidades de apoio, de cuidado e de amor de um pai".

Na prática, de acordo com o relatório, é raro que os sacerdotes assumam a responsabilidade legal e financeira da paternidade, e as mães de estas crianças muitas vezes não pressionam ou iniciam ações legais.

"Em 10 casos que The Boston Globe estudou em profundidade, apenas duas das mães foram ao tribunal para obterem apoio à criança, enquanto as outras deixaram a vontade do sacerdote para decidir como apoiar os seus filhos, mas encontraram pouca ajuda". Seis das crianças não receberam apoio dos pais para sua alimentação, saúde ou educação. E alguns dos sacerdotes que fizeram contribuições de ajuda econômica as condicionaram para que suas identidades fossem mantidas em segredo.

"Em alguns casos, a exigência de sigilo era desnecessária", disse Rezendes. As mães eram católicas devotas e consideravam os pais de seus filhos não só como tal, mas como representantes de Deus. "Muito diferente aos casos das vítimas de abuso sexual de clérigos, muitas vezes relutantes em denunciar seus abusadores porque imaginaram que eram de alguma forma culpados pelo que lhes havia sido feito, já que seus abusadores eram considerados homens santos".

Três anos atrás, o Comitê dos Direitos da Criança da ONU convocou o Vaticano a "estimar o número de filhos de padres católicos para descobrirem quem são e tomar todas as providências necessárias para garantir que os direitos dessas crianças em conhecer e receber o cuidado de seus pais seja respeitado".

Há algumas semanas, os bispos irlandeses aprovaram uma legislação, segundo a qual "o bem-estar da criança é primordial. O sacerdote deve assumir suas responsabilidades pessoais, legais, morais e financeiras". Essas diretrizes procuram garantir o "bem-estar" dos filhos dos sacerdotes e das mães dos pequenos. Por sua vez, insiste-se em que "o sacerdote deve assumir suas responsabilidades pessoais, legais, morais e financeiras". O documento também afirma que "é importante que a mãe e a criança não estejam isoladas ou excluídas".

Embora o Papa Francisco não tenha falado sobre este assunto específico, sendo arcebispo de Buenos Aires, o cardeal Bergoglio disse em 2010 que, se um dos seus padres confessasse ter um filho, ele responderia que suas obrigações "excediam sua vocação". Como resultado, ele escreveu no livro Sobre el cielo y la Tierra, o clérigo "deve deixar o ministério e cuidar da criança, mesmo que ele decida não se casar com a mulher".

Em Amoris Laetitia, Francisco lembra que "se uma criança chegar a este mundo em circunstâncias indesejáveis, os pais e outros membros da família devem fazer todo o possível para aceitar essa criança como um presente de Deus, e eles devem assumir a responsabilidade de aceitá-la com ternura e carinho".

A opinião dos bispos irlandeses é especialmente relevante, dado que o Papa Francisco presidirá em Dublin no próximo verão o Encontro Mundial das Famílias, onde o papa provavelmente encontrará alguns filhos de sacerdotes.

Religión Digital - Tradução Ramón Lara

Nenhum comentário:

Postar um comentário