segunda-feira, 3 de abril de 2017

Imagens da crucificação guiam 'Silêncio' e o nosso caminho quaresmal

domtotal.com
"Silêncio", enquanto obra de arte, transcende a fragilidade, 
o pecado e a dúvida humana. (Divulgação)
Por Irmã Rose Pacatte*

"Silêncio" é uma adaptação recente de Martin Scorsese do romance de 1966 do autor japonês Shusaku Endo. O filme conta a história de dois jovens padres jesuítas portugueses que viajam para o Japão no século XVII para encontrar o seu mentor, Padre Ferreira (Liam Neeson), que teria apostatado. É uma longa viagem de Portugal a Roma, Goa, Macau e, finalmente, ao Japão, onde o cristianismo é ilegal.

Mas esta viagem não é nada comparada à longa jornada espiritual de Padre Rodrigues (Andrew Garfield) ao chegar no Japão. Ele finalmente encontra Ferreira e descobre a misericórdia de Cristo em um caldeirão de dúvidas - e o silêncio do Jesus da sua juventude. Se você tem lido outros artigos sobre "Silêncio", leu o romance ou viu o filme, sabe que Rodrigues também torna-se apóstata ao pisar na imagem de Cristo para salvar a vida de seus companheiros cristãos. É uma cena de cortar a alma.

A imagem que orienta o filme e o nosso caminho quaresmal é o Cristo crucificado. Ela nos atrai, até mesmo nos intriga, a dirigir o olhar para Jesus na cruz durante a semana santa e na sexta-feira santa em particular. Contemplando o crucifixo, compreendemos que Cristo está conosco em nosso sofrimento para nos confortar - mesmo que duvidemos. A cena final de "Silêncio" direciona nosso olhar ao crucifixo que encontra-se nas mãos do falecido sacerdote apóstata Rodrigues. Por que Scorsese faz isso se não está no romance? O que devemos depreender disso?

Depois de reler o livro e assistir ao filme por quatro vezes, fico impressionado que em meio ao paradoxo que gira entre a fé e a dúvida, a misericórdia permanece e sustenta a narrativa. A mutualidade da misericórdia ativa os arcos de história daqueles que penso serem os quatro personagens principais: Rodrigues, Ferreira, Kichijiro (Y-osuke Kubozuka) e os cristãos japoneses simbolizados por Mokichi (Shin'ya Tsukamoto). É impossível, acredito, apreciar "Silêncio", ou mesmo começar a entendê-lo, sem reconhecer a qualidade da misericórdia humana e divina funcionando como graça nas vidas dos personagens e como Cristo na cruz, com sua promessa de esperança, une tudo isso no final.

Qual é a qualidade da misericórdia de Rodrigues? Em seus primeiros meses no Japão, esperando, ministrando e buscando por Ferreira, sua fé parece invencível. Ele absolve cristãos por seus pecados. Leva algum tempo para que Rodrigues e seu companheiro, o Padre Garupe (Adam Driver), descubram que Kichijiro é um cristão apóstata. O pobre homem carrega um pesado fardo de culpa e Rodrigues absolve-o em confissão.

Quando Rodrigues se aventura em outra aldeia, ele distribui cruzes e crucifixos e até mesmo as contas de seu rosário, uma por uma, perguntando-se: Será que eles valorizam estes simples sinais de fé mais do que a própria fé? Mas como podemos negá-los?

Neste ponto, a misericórdia de Rodrigues é paternalista; ele não imagina o papel que um desses "simples sinais de fé" terá em seu futuro. Logo no início, no casebre onde os dois padres abrigam-se em um primeiro momento, Mokichi, um cristão, vê o crucifixo no pescoço de Rodrigues e, ajoelhando-se diante do sacerdote enquanto eles comem, sentados no chão, pressiona-o na testa. Rodrigues pega-o e dá o crucifixo para Mokichi, que beija-o e coloca-o em seu pescoço.

Não muito tempo depois disso, o samurai vem à aldeia para testar as pessoas e prender os cristãos. Antes de seu próprio martírio, Mokichi pressiona um pequeno e simples crucifixo esculpido a mão na palma de Rodrigues. Mokichi é o único que fica perplexo quando Rodrigues diz à comunidade para pisar o fumie, a imagem de Maria e a criança ou de Cristo, em vez de admitir sua fé cristã e ser morto. Porém, Mokichi não julga Rodrigues. Em vez disso, ele dá a Rodrigues um crucifixo precioso que ele tinha esculpido para o jiisama, líder leigo, após os sacerdotes terem saído ou terem sido mortos.

Rodrigues fica muito emocionado. Mokichi explica que esse crucifixo é a única imagem religiosa que eles tinham desde a chegada dele e de Garupe. "Mas agora temos muito mais. De você." Quando Rodrigues diz que não com a cabeça, Mokichi diz: "Eu tenho outro. O que você me deu. Eu sempre vou tê-lo. Você leva esse. Por favor. Em nome de Jesus."

É esse crucifixo que, para Rodrigues, em cada sofrimento, moral, espiritual e físico, representa a presença de Cristo em todos os momentos difíceis de sua longa vida. É um símbolo, um sacramento; que ele vai levar consigo até sua própria morte auxiliado pela misericórdia secreta de uma esposa que ele nunca pediu ou quis. Mokichi é um homem misericordioso que não tem ideia do que o seu gesto amoroso virá a significar para o padre.

Antes da partida, Rodrigues diz a Mokichi: "Sua fé me fortalece. Eu gostaria de poder dar a você tanto quanto você me deu."Ao que o homem gentil e suave responde: "Meu amor por Deus é forte. Isso seria o mesmo que fé?".

"Acredito que sim", responde Rodrigues, enquanto Mokichi coloca os dedos do sacerdote ao redor do crucifixo.

Ferreira, o padre que pisou na imagem de Cristo para salvar a vida dos cristãos, torna-se um enigma estoico. Ele passa a viver como japonês, budista, escrevendo livros acadêmicos para as pessoas e até mesmo um livro contra o cristianismo. Depois de encontrar Rodrigues pela primeira vez para convencê-lo a tornar-se apóstata, vemos que o jovem não acredita que Ferreira esteja tão longe de seu próprio ideal de ser e agir de um padre jesuíta. Mais tarde, depois que Rodrigues pisa no fumie para salvar cinco cristãos, eles são forçados a trabalhar em conjunto para identificar itens cristãos trazidos para o país por comerciantes holandeses.

O último diálogo entre os dois ocorre quando Rodrigues encontra uma cruz escondida no forro do bolso de uma calça de marinheiro. Ele entrega-o a Ferreira, que entrega para os japoneses, que o descartam. Quando Ferreira vê o olhar de desdém aos japoneses no rosto de Rodrigues, ele calmamente diz: "Fomos ensinados a amar aqueles que nos desprezam."
Rodrigues responde: "Eu não sinto nada por eles."

Ferreira dá de ombros e diz: "Só Nosso Senhor pode julgar o seu coração."

Rodrigues sussurra rapidamente: "Você disse 'Nosso Senhor' ".

Ferreira dá a última palavra: "Eu duvido."

E assim, neste jogo de palavras, Ferreira chega ao núcleo do silêncio de Deus - a dança entre dúvida e fé, esperança e misericórdia. Ele ainda é professor e mentor de Rodrigues. Escondidas nas palavras do homem mais velho estão a misericórdia da fé e a esperança. Se Rodrigues duvidava da realidade interior de Ferreira antes, agora ele percebe que sua alma ainda vive. A graça, esse dom incondicional e misterioso da presença divina e de seu apoio, impulsiona Rodrigues a avançar para reconstruir sua relação com Cristo através da confiança na graça e na misericórdia de Deus. E ele permanece com o crucifixo dado por Mokichi. Por que Rodrigues o mantêm?

O que podemos dizer sobre Kichijiro, que, junto com Rodrigues, aparece na história desde o início até quase o fim? Quando os sacerdotes o encontram em Macau, ele é um bêbado miserável. Seu passado é descoberto: depois de pisar no fumie para salvar sua família, ele se desespera porque o samurai os matou mesmo assim.

Ele finalmente pede para confessar seus pecados e Rodrigues o absolve em nome de Cristo. Mas Kichijiro apostata por diversas vezes, fugindo e voltando a força ao local onde Rodrigues está preso, para pedir perdão, para a absolvição.

A mutualidade de sua misericórdia é demonstrada em uma das cenas mais emblemáticas do filme, que eu não havia observado até assisti-lo pela terceira vez. Ficou martelando na minha mente. Enquanto Rodrigues se estabelece em sua nova realidade, praticamente um prisioneiro em sua própria casa, Kichijiro torna-se uma espécie de servo para ele. Mas o homem, fraco, não consegue escapar da culpa de seus muitos atos de traição. Rodrigues, que tem todos os motivos para detestar Kichijiro por seu papel na captura do padre, agradece por estar com ele. Ele percebe que Kichijiro quer se confessar novamente e ele se recusa, pois é "um padre corrompido".

Eles vão e voltam. Kichijiro diz que sofre por suas muitas traições. Finalmente, Kichijiro, de joelhos, inclina-se para o sacerdote, que coloca sua mão esquerda sobre a cabeça de Kichijiro e estende a direita em um gesto de súplica.

Neste momento de silêncio, Rodrigues ouve a voz de Jesus: "Eu sofri ao seu lado. Eu nunca estive em silêncio."

A jornada de Kichijiro não acaba por aí. As autoridades descobrem um amuleto em seu pescoço. Ao abri-lo, há uma imagem de São Paulo de um lado e de São Francisco Xavier e um anjo, do outro. Ele é preso e desaparece no filme.

Matthew Malek, um dos produtores executivos do filme, acredita que Endo teria aprovado o final do filme de Scorsese, com o close do crucifixo de Mokichi nas mãos de Rodrigues, porque entenderia que o cinema necessita desse final esperançoso em meio ao desespero. "Endo", disse Malek em uma entrevista, "não criticaria o que foi feito porque entenderia o que é a arte."

"Silêncio", enquanto obra de arte, transcende a fragilidade, o pecado e a dúvida humana. "Silêncio" leva-nos em uma viagem que muito provavelmente não faríamos sozinhos. Ficamos com uma sensação de mistério e perguntas sobre as escolhas dos personagens, sua dúvida e sua fé. Mas uma pergunta que não precisamos fazer é sobre o significado e a qualidade do amor, da graça e da misericórdia de Cristo, ao contemplar sua morte na cruz e a promessa de sua ressurreição.


National Catholic Reporter, 25-03-2017.

*Membro das Filhas de São Paulo e diretora do Centro Paulino de Estudos Midiáticos (Pauline Center for Media Studies) em Los Angeles.

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