segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Parábola de Bento Rodrigues

Em meio ao silêncio, muitos permanecem a desfrutar para sempre de sensações passadas.
Por Ricardo Soares*
Um menino, coberto de lama, levanta, ainda meio tonto, no meio dos escombros e olha em volta. Não vê mais a escola onde estudou, a casa onde morou, a igreja onde foi batizado. Não vê seu pai, sua mãe, não vê seu avô e nada do seu passado. Consegue esticar os braços e alcançar a velha bicicleta, totalmente enlameada e meio soterrada. Tudo está ressecado. Ele, o tempo, todas as esquinas e praças.
O menino, coberto de lama, tenta caminhar. Os pés continuam presos na imundície. Tem sujeira até quase a altura dos seus joelhos. Com dificuldade ele se mexe, anda em volta de si mesmo e descobre que é um sobrevivente. Não sabe se os vizinhos e parentes estão mortos mas como não vê ninguém e agora só resta o silêncio ele acha que está vivendo num povoado fantasma.
De uma árvore mais alta, a que sobrou no meio do lamaçal, ele vê uma senhora acenando. Coça os olhos - também cheios de lama - e acha que está vendo sua avó que morreu do coração uns dois anos antes. Mas como a avó pode estar viva se já estava morta bem antes dessa inundação de lama? Devagar ele se aproxima da árvore e ainda consegue arrastar sua bicicleta estragada. Uma mão velha, calosa, de dedos um pouco trêmulos lhe é estendida. É a mão da avó. Ela segura firme e com uma força insuspeitada levanta o menino até o galho alto onde está. Não diz nada a velha senhora. Só estende um pedaço de maria mole ao neto. Ambos começam a mascar o doce como se fossem bezerros molhados e cansados. Ela não está triste. Apenas sacode a cabeça e contempla a desoladora paisagem.
Aos poucos, um milagre. A paisagem começa a clarear, a ficar menos feia, menos enlameada, menos embaçada. Voltam as cores, sopra uma brisa fresca que traz o cheiro de dama da noite e o menino coberto de lama volta a ver a igreja, sua escola, a sua casa. Vê na varandinha tosca os seus pais, o avô picando fumo, chega uma fumacinha de fogão de lenha. Quer perguntar alguma coisa para a avó mas não pode, não consegue. Ela, muito serena, apenas põe seus velhos dedos defronte a boca como se pedisse silêncio. E no silêncio permanecem a desfrutar para sempre de sensações passadas.
*Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Autor de 7 livros foi cronista dos jornais "O Estado de S.Paulo", "Jornal da Tarde", "Metrô News", "Diário do Grande Abc" e da revista "Rolling Stone".

Nenhum comentário:

Postar um comentário