segunda-feira, 27 de julho de 2015

A Europa está a desfazer-se?

Diz o ditado português: ‘casa onde não há pão, todos brigam e ninguém tem razão’.
O sonho europeu ainda não morreu, mas já se transformou em pesadelo
Por José Couto Nogueira*
A Europa-continente sempre existiu, muito antes de ser habitada, mas a Europa-entidade política foi sempre um sonho bélico, imposto por um país dominante e de curta duração – isto até 1993, quando nasceu pacificamente a União Europeia.
Pela primeira vez na História, o continente procurava uma identidade comum por acordo voluntário entre países que há séculos se guerreavam.
Na altura, as espectativas eram muito altas. Pois, se os países europeus tinham invadido, conquistado e saqueado o planeta inteiro lutando entre si, o que não conseguiriam se finalmente se unissem com objectivos comuns – objectivos esses que não eram mais o domínio e a exploração de outros continentes, mas sim a prosperidade, a felicidade e o progresso dos seus 500 milhões de habitantes?
Dos seis países iniciais (França, Itália, Alemanha Federal, Bélgica, Holanda e Luxemburgo) a então Comunidade Económica Europeia (formada em 1957) cresceu rapidamente, pois todos queriam fazer parte, e os que já tinham aderido poucas demandas faziam aos candidatos. Exigia-se alguns critérios económicos mínimos e uma democracia parlamentar em funcionamento. Diferenças económicas, por vezes abissais, e diferentes graus de desenvolvimento, seriam resolvidos depois da entrada, através de uma redistribuição de dinheiro – o chamado Fundo de Coesão – em que os mais ricos emprestavam aos mais pobres a fundo perdido.
Em 1973 entraram o Reino Unido, a Irlanda e a Dinamarca, em 1981 a Grécia e em 1986, já como União Europeia, Portugal e Espanha.  Actualmente são 28 países – toda a Europa, com excepção da Suíça, que tem um estatuto especial (dentro para o que lhe interessa, fora para o que não lhe dá jeito…)
Tudo parecia correr bem, ou pelo menos razoavelmente, até vir a maldita crise de 2007-08. Foi nos Estados Unidos, mas os Estados Unidos puniram rapidamente os responsáveis (alguns), corrigiram a regulamentação e relançaram a economia. Na Europa, entretanto entregue a burocratas e políticos sem inspiração, não aconteceu nada disso. Não se tomaram medidas, ou fizeram-se remendos parciais. As diferenças entre as economias dos países do Sul (endividados) e do Norte (excedentários) criaram uma enorme distância entre a qualidade de vida e as espectativas nuns e noutros. A Alemanha, entretanto unificada, era a economia mais forte. A Grã Bretanha, que noutros tempos estabelecia um equilíbrio de poder com os alemães, parecia – e parece – cada vez menos interessada no projecto europeu. A Grécia, economia mais fraca, estourou.
Enfim, para encurtar uma longa história, de repente temos uma Europa dividida, tanto em termos económicos como comportamentais. Em vez de solidariedade, egoísmo, em vez de ajuda, indiferença. Lá diz o ditado português: “casa onde não há pão, todos brigam e ninguém tem razão”.
Em relação à Grécia, a falta de solidariedade é continental. Até países igualmente endividados e com programas de reajustamento extremamente severos, como Portugal ou a Irlanda, estão do lado dos alemães. E os alemães, personalizados na sua desagradável chanceler, frau Merkel (educada por um pai calvinista na Alemanha comunista) e no ainda mais desagradável Ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, têm sido inflexíveis a exigir e implacáveis a humilhar os gregos.
Se os governos europeus, na sua maioria de direita ou centro-direita, estão juntos a exigir o impossível ao governo de esquerda grego, já entre os cidadãos as opiniões são mais equilibradas. As esquerdas, de moderadas a radicais, acusam os alemães de neo-nazismo e lembram que a Alemanha teve um enorme perdão de dívida em 1957. As direitas, mesmo moderadas, lembram que os gregos nunca pagaram impostos, têm reformas de luxo e, em geral, formam um estado disfuncional em que ninguém cumpre suas obrigações e todos enganam a administração.
O único Governo importante de esquerda, pelo menos oficialmente, é o francês, mas François Hollande está muito enfraquecido politicamente e não tem poder ao nível europeu. Fala-se da saída da Grécia do euro (mas não da EU), mas muitos receiam que seja o princípio do fim, não só para a moeda mas também para o projecto europeu. O que todos concordam é que esse projecto já não é o que era.
Nesta situação, a cacofonia de opiniões é de enlouquecer.
Eduardo Lourenço, o respeitadíssimo filósofo luso, escreve que “o resultado da Segunda Guerra Mundial subalternizou até hoje a nossa Europa no plano mundial”. Até aqui nenhuma surpresa: é um facto indiscutível. Mas acrescenta: “Duas guerras suicidárias de dimensões ou consequências planetárias deixaram o antigo e secular continente hegemónico do mundo à beira do abismo. Salvou-nos dele o socorro, ou a intervenção decisiva nesse confronto letal, de dois países: um não-europeu, mas filho da Europa e do restante mundo, e outro europeu mas não apenas europeu, a então União Soviética.”
Lourenço coloca os britânicos fora da construção europeia, e de facto eles nunca a quiseram; apenas se aproximaram porque viram interesse económico, e ao menor sobressalto, querem sair.
Jochen Bittner, editor de política do influente semanário Die Zeit escreveu no New York Times que a Alemanha, coitada, esticou-se demais e que agora tem de enfrentar a crise do euro, a situação na Ucrânia, e a falta de confiança na Europa. É demais para os formatados alemães.
A historiadora Anne Applebaum diz, no Washington Post, que “nunca ninguém imaginou um mundo em que a Alemanha estaria a negociar directamente com a Rússia, que a França seria fraca demais, que a Grã-Bretanha só olhasse para o seu umbigo ou que os Estados Unidos não se interessassem pela Europa.”
Seja lá como for, a Alemanha de hoje não é a do tempo de Adenauer, Brandt ou Kohl. Já não é o país da República de Bona. É a Alemanha que passou pela reunificação e por um difícil processo de reajustamento económico e de reformas estruturais que lhe permitiram reassumir o papel de locomotiva económica da Europa. Antes, a Alemanha era “ocidental, europeia e alemã”, por esta ordem. Agora é “alemã, europeia e ocidental”, afirma a jornalista Helena Ferro de Gouveia.
Uma das ideias que tem andado a circular é o seguinte: e se for mais fácil resolver os problemas do euro saindo a Alemanha em vez de sair a Grécia? Um dos argumentos é o enorme excedente comercial da Alemanha. A volta do marco alemão faria que o euro despencasse, estimulando as exportações dos outros países, e a Alemanha teria um incentivo para melhorar os seus produtos. Quem diz isto é a jornalista Mehreen Khan, do Telegraph.  
Claro que a saída da Alemanha do euro é demasiado assustadora para uma Europa que treme só com a ideia da saída da Grécia. Uma Europa que, nos dias que correm, treme por tudo e por nada.
Estará realmente o “sonho europeu” morto? Para já, deixou de ser um sonho. Parece mais um pesadelo. Agora, como em todos os estados oníricos, há uma altura em que se acorda. Apesar dos pesares, todas as possibilidades continuam em aberto.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.

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