domingo, 24 de agosto de 2014

Legado de Vargas persiste 60 anos após suicídio, aponta historiador

Especialista destaca herança getulista na política e na economia.

Neste domingo (24), faz seis décadas que o ex-presidente se matou.

Fabiano CostaDo G1, em Brasília
Pijama usado por Getúlio Vargas no dia de sua morte - Palácio do Catete (Foto: Marcelo Elizardo/G1)Pijama usado por Getúlio Vargas no dia de sua morte é exibido no Palácio do Catete (Foto: Marcelo Elizardo/G1)
Passadas seis décadas do suicídio do presidente Getúlio Dornelles Vargas, legados do ex-chefe do Executivo ainda continuam vivos na política, na economia e na estrutura social brasileira, aponta o historiador Gunter Axt, doutor em História Social da Universidade de São Paulo (USP). Pressionado por militares e pela oposição a renunciar ao mandato, o presidente que mais tempo ficou à frente do país pôs fim à própria vida, aos 72 anos, com um tiro no coração disparado por um revólver Colt calibre 32.
A morte trágica do líder civil da Revolução de 1930, presidente constitucional, ditador do Estado Novo e um dos principais personagens da política brasileira no século 20 gerou comoção no país em 24 de agosto de 1954 e adiou, por uma década, um golpe de Estado. O suicídio do homem conhecido como “pai dos pobres” foi o desfecho dramático de uma crise política que antecipou o epílogo do segundo governo de Vargas na Presidência da República.
São espólios da administração getulista, por exemplo, a Petrobras, a Companhia Vale do Rio Doce, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além de conquistas sociais como a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o salário mínimo e o voto feminino. Contabilizando-se os dois momentos em que comandou o Palácio do Catete, antiga sede do governo federal, o gaúcho do pequeno município de São Borja, na fronteira do Brasil com a Argentina, ditou os rumos do país ao longo de 19 anos.
Getúlio propôs perspectivas inovadoras, que um político comum da época dele não teria estabelecido. O legado de Vargas é complexo, se estende por todos os setores da vida nacional, da política à cultura”
Gunter Axt, historiador
Um dos principais estudiosos da trajetória de Vargas, Gunter Axt classifica o controverso ex-presidente como peça-chave para a definição do que chamamos atualmente de “identidade brasileira”.
Autor de três livros sobre Getúlio Vargas - além de diversos artigos publicados no Brasil e no exterior -, o historiador afirma que mesmo oriundo de um universo político tradicional - baseado na honra e em costumes machistas e conservadores -, o ex-presidente da República “sempre foi um político moderno” para o seu tempo.
“Getúlio propôs perspectivas inovadoras, que um político comum da época dele não teria estabelecido. O legado de Vargas é complexo, se estende por todos os setores da vida nacional, da política à cultura”, observou o especialista.
Segundo Axt, todos os governos que sucederam Vargas - incluindo os presidentes do regime militar (1964-1985), apossaram-se, de alguma forma, do estilo ou das práticas políticas e administrativas do principal líder político do país no século passado.
“Ele [Getúlio] foi tão complexo que, em qualquer governo, vamos encontrar similitudes com as administrações dele. Na ditadura, os militares romperam com aquela figura do Getúlio ideológico e socialista, mas replicaram o Getúlio nacionalista, que fazia o estado intervir em áreas estratégicas, como na educação”, enfatizou.
A herança de Vargas na economia
Apesar de reconhecido na História pelas habilidades políticas, o ex-presidente brasileiro sempre procurou atrair para o seu gabinete quadros técnicos que se destacavam na máquina pública, relata Gunter Axt. Com a assessoria desse corpo técnico, Getúlio Vargas deu, ainda na década de 1930, o pontapé inicial para o processo de modernização do país, até então uma nação com economia baseada na agricultura.
Em um momento histórico em que o petróleo despontava como principal fonte energética do planeta, Vargas identificou o potencial político e econômico do chamado “ouro negro” e, em 1938, em plena ditadura do Estado Novo, decretou a nacionalização das jazidas de petróleo. Ele também criou naquele ano o Conselho Nacional de Petróleo, declarou de “utilidade pública” o abastecimento do recurso mineral e proibiu estrangeiros de participarem da indústria de refinação.
Sala ministerial no Palácio do Catete - Getúlio Vargas (Foto: Marcelo Elizardo/G1)Sala onde Vargas reunia seus ministros de Estado,
no Palácio do Catete (Foto: Marcelo Elizardo/G1)
Na década de 1950, de volta ao poder por meio do voto popular, ele dedicaria novamente atenção ao tema. Sem maioria no Congresso, Vargas acatou conselhos de assessores próximos e abriu mão de capitanear um debate em torno da proibição do capital estrangeiro na indústria petrolífera. Em vez disso, decidiu investir seu capital político na criação de uma empresa de capital misto, com controle público, que monopolizasse a exploração e o refino de petróleo no território brasileiro. Nascia a Petrobras.
 
Arma que Getúlio Vargas usou em seu suicídio - Palácio do Catete (Foto: Marcelo Elizardo/G1)Arma usada por Vargas em seu suicídio e bala
retirada do seu corpo (Foto: Marcelo Elizardo/G1)
Outra campanha getulista que rende frutos até os dias de hoje foi travada na esfera industrial. Disposto a romper com a dependência externa brasileira na indústria, em um momento em que ocorria um conflito bélico mundial, o antigo chefe do Executivo decidiu investir na grande siderurgia.
Após exaustiva negociação com os Estados Unidos, na qual simulou flertar com o eixo de países liderados pela Alemanha na 2ª Guerra Mundial, Vargas obteve aval da Casa Branca e financiamento de bancos norte-americanos para construir a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ).
Criado em 1941, mas inaugurado apenas em 1946 - um ano após o fim da primeira passagem de Vargas pelo Palácio do Catete -, o complexo siderúrgico fluminense foi idealizado para atender a um projeto de desenvolvimento econômico, mas também para dar retaguarda à soberania do país com a fabricação de aço. Privatizada, em 1993, pelo então presidente Itamar Franco, atualmente, a CSN é a maior indústria siderúrgica da América Latina e uma das maiores do mundo.
Já em 1942, intensificando sua política nacionalista, Vargas criou, por meio de um decreto-lei, a Companhia Vale do Rio Doce. Inicialmente uma empresa de capital misto, com controle acionário do governo federal, a Vale surgiu para afastar as pretensões de empresas estrangeiras nas riquezas minerais do subsolo brasileiro, principalmente o ferro.
A companhia conquistou espaço no mercado internacional ao longo das últimas sete décadas, tornando-se uma das maiores mineradoras do mundo. Privatizada, em 1997, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a Vale é hoje uma empresa privada de capital aberto.
Entrada do Palácio do Catete - Getúlio Vargas (Foto: Marcelo Elizardo/G1)Entrada do Palácio do Catete (Foto: Marcelo
Elizardo/G1)
Surgiram também pelas mãos de Vargas outras iniciativas que ajudaram a impulsionar a economia do Brasil no século passado. Por sugestão do ex-presidente ao Congresso, foi criado, na década de 1940, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), que, anos mais tarde, ganhariam um “S” à sigla para promover também o desenvolvimento social do país, tornando-se o atual BNDES.
Com o objetivo de difundir os “nervos” do Estado pelo país, ao longo dos dois governos de Vargas, a União investiu na construção de estradas de rodagem e de ferro, na consolidação do sistema de radiodifusão, na capilarização do Banco do Brasil e dos Correios pelo território nacional e, inspirado pelas experiências da Petrobras e da CSN, estatizou a geração e a distribuição de energia elétrica por meio da criação das Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobrás).
Na área administrativa, coube ainda ao ex-presidente, entre outros empreendimentos, a implantação dos serviços nacionais de aprendizagem industrial e comercial (Senai e Senac), além do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), responsável pela elaboração de estatísticas oficiais do país. 
Forjado politicamente no positivismo republicano do Rio Grande do Sul do início do século 20 – regime político marcado por um Executivo forte apoiado por um parlamento de fachada, pela austeridade financeira e pelo dogma da eficácia administrativa –, Vargas, de acordo com Gunter, soube equilibrar, no período em que governou o Brasil, o liberalismo ortodoxo gaúcho com um projeto de desenvolvimento do país.
“Do ponto de vista econômico, Getúlio sempre manteve a preocupação com o equilíbrio financeiro e orçamentário, combinado com um projeto nacional. Ele tinha um projeto de país, mas administrou o Brasil sem gastar mais do que tinha”, ressaltou o doutor em História da USP.
Quarto de Getúlio Vargas no Palácio do Catete (Foto: Marcelo Elizardo/G1)Quarto onde Getúlio Vargas foi encontrado morto, no
Palácio do Catete (Foto: Marcelo Elizardo/G1)
Legado social
O gaúcho Getúlio Vargas ocupou a cadeira de presidente pela primeira vez em 3 de novembro de 1930, ao final de uma revolução que sacramentou o fim da chamada “política do café com leite”,  na qual paulistas e mineiros se revezavam no comando do país.
Já nos primeiros anos do “governo provisório” (1930-1934), Vargas começou a implementar medidas inéditas na órbita trabalhista, muitas delas em vigor até hoje. Em um de seus primeiros atos no papel de chefe do governo revolucionário, Vargas criou, em 26 de novembro de 1930, o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
A decisão de trazer para o governo o papel de árbitro dos conflitos entre patrões e empregados é a primeira de diversas outras medidas que viriam a ser implementadas por ele na área trabalhista. Entre outras inovações, Vargas regulamentou o trabalho de mulheres e de menores de idade, criou o salário mínimo, fixou a jornada de trabalho em oito horas diárias e instituiu a carteira profissional.
Na primeira fase de seu primeiro governo, ele criou ainda os Institutos de Aposentadorias e Pensões, iniciativa que começou a tratar da questão previdenciária no país.
Com o auxílio dessas medidas, teve início a construção da mítica figura do “pai dos pobres”. Mais tarde, durante a ditadura do Estado Novo, a máquina estatal do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) iria atuar intensamente para construir e fixar a imagem popular e carismática de Vargas diante da classe trabalhadora.
Algumas questões políticas surgidas na Era Vargas continuam sendo replicadas nos governos atuais
Gunter Axt, historiador
O historiador Gunter Axt ressalva, contudo, que ao mesmo tempo em que oferecia direitos inéditos aos trabalhadores, enfrentando duros protestos dos empresários, Vargas tratou de implementar mecanismo de controle estatal sobre os sindicatos.
“Até hoje, os sindicatos padecem do atrelamento ao Estado, com regras como a sindicalização obrigatória. Os contornos dessa política de controle sindical foram desenhados pelo Getúlio e ainda estão em vigor”, destacou o pesquisador.
Em 1º de maio de 1943, Vargas reuniu e sistematizou, por meio de um decreto-lei, o cipoal de leis trabalhistas que ele mesmo havia produzido desde que chegou ao poder, em 1930. O decreto, batizado de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), unificou pontos da legislação já existente, mas também criou novos direitos e regulamentações trabalhistas.
A CLT, entre outros aspectos, passou a regular minuciosamente as relações entre patrões e empregados e a estabelecer regras como direito a férias e a descanso semanal remunerado.
Retrato de Getúlio Vargas em seu quarto no Palácio do Catete (Foto: Marcelo Elizardo/G1)Retrato de Getúlio Vargas em seu quarto no Palácio
do Catete (Foto: Marcelo Elizardo/G1)
Espólio político
Estudioso da Era Vargas, Gunter Axt observa que, durante os 19 anos em que o presidente esteve à frente do país, o Executivo federal cresceu de tamanho e de poder. Desde os governos de Getúlio Vargas, ressalta o historiador, o Estado brasileiro passou a exercer um papel central no processo de modernização do país.
“Algumas questões políticas surgidas na Era Vargas continuam sendo replicadas nos governos atuais. Por exemplo, o papel do Executivo interventor em áreas da economia é importante. A ideia das PPP [Parcerias Público-Privadas], que emergiram recentemente no governo FHC, foram usadas na gestão [do presidente] Lula e foram recuperadas pela presidente Dilma, já estava presente no governo de Getúlio”, ponderou Axt.
Getúlio na literatura, no cinema e na televisão
Livros nacionais
“Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder” (Companhia das Letra), de Lira Neto
“Getúlio: do governo provisório à ditadura do Estado Novo” (Companhia das Letras), de Lira Neto
“Getúlio: da volta pela consagração popular ao suicídio” (Companhia das Letras), de Lira Neto
“1954: um tiro no coração” (L&PM), de Hélio Silva
“Getúlio” (Record), de Juremir Machado
“Getúlio Vargas: o poder e o sorriso” (Companhia das Letras), de Boris Fausto
Livros estrangeiros
“Estado Novo: Genesis und Konsolidierung der brasilianischen Diktatur von 1937” (Verlag fur Entwicklungspolitik Saarbrucken), de Jens R. Hentschke
“Vargas and Brazil: new perspectives” (Palgrave Macmillan), de Jens R. Hentschke
 Filmes
“Getúlio”, dirigido por João Jardim, com Tony Ramos e Drica Moraes (veja ao lado cenas do filme e entrevista com Tony Ramos).
Televisão
“Há 60 anos suicidava-se o presidente Getúlio Vargas”, programa Arquivo N, da GloboNews (assista ao programa).

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