quinta-feira, 24 de julho de 2014

O massacre e as crianças sem rosto

Morrer é uma coisa, que a transformem em uma mancha, é outra coisa.

“Quando estão vivas, as crianças podem ser filmadas. Podem ser mostradas na televisão. Caso estejam feridas – sempre que as lesões não sejam muito terríveis –, permitem-nos vê-las em seu sofrimento. Para nós, como nações, não nos importam muito, é claro. Daí nossa negativa, por exemplo, para intervir no banho de sangue de Gaza. Podemos sentir piedade por elas – podemos chorar por elas –, mas não as respeitamos. Se assim fosse, estaríamos indignados por suas mortes. Porém, uma vez que estejam mortas, devemos demonstrar-lhes um respeito que nunca demonstramos quando estavam vivas. Deve-se manter a privacidade de seu assassinato protegendo seus rostos”, critica o jornalista Robert Fisk.
Eis o artigo:
Morrer é uma coisa, que a transformem em uma mancha, é outra coisa. A mancha é a estranha “nuvem” mística que os produtores pusilânimes de televisão colocam sobre a imagem de um rosto humano. Eles não estão preocupados em que os israelenses se queixem de que o rosto de um palestino morto demonstre a brutalidade israelense. Nem que o rosto de um israelense morto converterá em besta o palestino que o matou. Não. Estão preocupados com a Oficina de Comunicações. Estão preocupados com as regras. Estão preocupados com o bom gosto – algo que esses modelos de TV conhecem bem -, porque têm medo que alguém grite, caso veja nas notícias um verdadeiro humano morto.
Em primeiro lugar, vamos deixar de lado todas as desculpas habituais. Sim, aceito que há uma pornografia do morbo. Chega-se a um ponto, talvez – embora, pelo que eu saiba, isto nunca foi demonstrado -, onde a repetida visão de carnificina humana pode levar outros a cometer atos de grande crueldade. E chega-se a um ponto em que filmar um cadáver terrivelmente mutilado demonstra – vamos utilizar a palavra só uma vez – uma falta de respeito pelos mortos. Do mesmo modo que, quando fechamos a tapa de um caixão, chega-se a um ponto em que devemos baixar a câmera.
Porém, eu não acredito que seja por isso que encubram os rostos dos mortos. Acredito que uma cultura rasteira e covarde, de evitar a morte na televisão, esteja dominando os jovens insípidos que decidem o que devemos e o que não devemos ver da guerra, uma prática que tem implicações políticas muito graves.
Porque, agora, estamos chegando a um ponto em que as crianças mortas, em Gaza – esqueçamos as mulheres e os homens, por um momento –, não possuem rostos. Um corpo pequeno pode ser mostrado, mas seu rosto – a imagem própria de sua alma, principalmente se não estiver marcado pelas feridas que causaram a morte do corpo – deve ser cruelmente encoberto por um recurso científico, assim matamos a criança pela segunda vez. Permita-me explicar.
Quando estão vivas, as crianças podem ser filmadas. Podem ser mostradas na televisão. Caso estejam feridas – sempre que as lesões não sejam muito terríveis –, permitem-nos vê-las em seu sofrimento. Para nós, como nações, não nos importam muito, é claro. Daí nossa negativa, por exemplo, para intervir no banho de sangue de Gaza. Podemos sentir piedade por elas – podemos chorar por elas –, mas não as respeitamos. Se assim fosse, estaríamos indignados por suas mortes. Porém, uma vez que estejam mortas, devemos demonstrar-lhes um respeito que nunca demonstramos quando estavam vivas. Deve-se manter a privacidade de seu assassinato protegendo seus rostos.
Na semana passada, Al Jazira mostrou a um choroso pai palestino levando sua bebê recém-morta até um cemitério de Gaza. Tinha os cabelos pretos e encaracolados e o rosto de uma menina gentil, morta como se estivesse dormindo, a inocência feita carne, um anjo a quem – todos nós – tínhamos matado. Contudo, a maioria dos canais de televisão do Reino Unido – e a BBC tornou-se especialista nesta censura – destruíram seu rosto com uma mancha cinza. Nós, mestres da televisão, permitimos ver seus cabelos encaracolados negros. Entretanto, abaixo dos cabelos estava essa abominável mancha. E à medida que a menina era levada, a mancha se movia junto com o seu rosto. Era um insulto ao pai e à menina.
Ele não tinha carregado em seus braços – em público, até o cemitério – para nos mostrar o grau de sua perda? Por acaso, não queria que víssemos o rosto de anjo que acabava de morrer? É claro que queria. Porém, os trapaceiros da televisão britânica – covardes, temerosos de seus próprios mestres – decidiram que não se deve permitir a este pai mostrar a proporção de sua perda. Precisaram desfigurar sua filha com essa mancha repugnante. Transformaram a menina em uma boneca sem rosto.
Isto não tem nada a ver com a demanda oh-tão-moral da Oficina de Comunicações, de que o público nunca deve ver o “ponto da morte” - mesmo que tenha mostrado uma palestina de Gaza morrendo na sala de operações, em um documentário de televisão de 1992, e que constantemente nos mostrem reprises de jornalistas de televisão, em Bagdá, aos quais se dispara a morte a partir de um helicóptero dos Estados Unidos. E não tem nada a ver com o “bom gosto”, seja para o que for. Pessoalmente, acredito que a visão das armas israelenses ou os foguetes do Hamas é de um mau gosto repugnante - são, afinal de contas, os mercadores da morte, não é assim? -, mas, não, a televisão absorve estas cenas terríveis. Devemos vê-las. Não há problema. As armas são boas. Os corpos são maus. Oh, que guerra encantadora!
Sei que muitos de meus colegas de televisão estão furiosos com esta censura da morte. “Ridículo, absurdo e cada vez pior”, foi como reagiu meu velho companheiro Alex Thomson, do Canal 4, quando o chamei para falar sobre isto, a mais potente autocensura da semana passada. Recordou como os telespectadores britânicos puderam ver o pessoal médico recolhendo partes de corpos da estação de ônibus de Oxford Street, em Belfast, na Sexta-feira Sangrenta da Irlanda do Norte. Isto, é claro, realçou a maldade do IRA.
E historicamente, em absoluto, não somos apreensivos em mostrar aos mortos. Documentários ainda mostram as escavadeiras do exército britânico, repletas de milhares de cadáveres de judeus nus, em fossas comuns, no campo de concentração de Belsen, em 1945. Nestes últimos seis meses, televisionamos milhares de imagens de soldados mortos – desfigurados, mutilados, apodrecendo – na guerra de 1914-18, em documentários de grande alcance. Há um limite de tempo à morte, assim como existe nos crimes de guerra?
Página/12, 23-07-2014.

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