terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Judeus queimados vivos em Lisboa

Em seu best-seller, Richard Zimler retrata um momento trágico da história de Portugal.



Richard Zimler retrata uma cidade conturbada pela peste e pelo medo. (Foto: Arquivo)
Por Lev Chaim, de Amsterdã*

No trem, às vezes na casa de amigos, ou em outro lugar qualquer, a pergunta é sempre quase a mesma: o que você lê no momento? Uma biografia, um romance, uma trama de suspense? Quando respondo que estou bebendo as palavras de um livro que resume todos estes assuntos, permeados com fatos históricos, todos ficam mortos de curiosidade.

Trata-se do "O último cabalista de Lisboa", best-seller internacional do escritor norte-americano Richard Zimler, que vive há anos na cidade do Porto e acaba de ganhar uma nova edição de seu romance em Portugal. Ele retrata a Lisboa de 1506, prestes a passar por um dos momentos mais tristes de sua história, quando milhares de judeus convertidos ao catolicismo são queimados vivos por fanáticos religiosos.

Esses cristãos-novos, como eles eram conhecidos, foram culpados pelos religiosos e pelo populacho de serem os responsáveis pela peste e pela seca que assolavam Portugal na época. São os primeiros passos da perseguição religiosa instaurada pelos Tribunais da Inquisição.

Isto é apenas o pano de fundo do enredo da história, com o drama pessoal do jovem Berequias Zarco, que encontra o seu amado tio e tutor, o rabino Abraão Zarco, morto, despido, ao lado de uma jovem também morta e despida, no porão de sua casa. Um religioso morto, desnudo, ao lado de uma jovem? O que pensar de tudo isto?

O porão secreto era usado pela família e amigos como sinagoga – espaço de reza e estudos da Torá – a bíblia judaica, o velho testamento; e usado também como oficina para copiar salmos e outros livros proibidos pelas autoridades portuguesas.

E ali, também, estudava-se a cabala – misticismo judaico, que mesmo para muitos judeus ainda era um tanto quanto controverso e incompreensível. Foi o tio Abraão que iniciara Berequias nos mistérios do Zohar, o livro que reunia todas as riquezas deste misticismo judaico conhecido pelo nome de cabala.

Como se não bastasse o drama da cidade dominada pelo fanatismo religioso, comandada por Dom Manuel – um rei fraco e omisso, Berequias se vê envolvido na morte de seu adorável tio, que sempre lhe serviu de inspiração e exemplo. Como continuar a viver sem ele?

O último cabalista de Lisboa é, sem dúvida, uma coletânea de detalhes intrigantes com a mistura de história e ficção, com cores e cheiros diversos, numa rica exposição de usos e costumes de diferentes povos e credos, numa cidade conturbada pela peste e pelo medo. Para muitos na época, Lisboa era o próprio inferno.

Com uma memória fotogênica, Berequias guardou todos os detalhes da terrível cena do porão, em que encontrou o amado tio, morto e despido. Tudo ocorreu no segundo dia da páscoa judaica, onde se comemorava a libertação dos judeus da escravidão no Egito.

E ele ainda se lembrava muito bem do que o tio sempre lhe dizia: o faraó – o rei dos egípcios – não morreu na travessia do Mar Morto, mas continua vivo e perseguindo inocentes. Na linguagem cabalística, faraó também significa satanás.

Berequias Zarco vai à procura do assassino do tio, meio desesperado para esclarecer tudo que a cena do porão não contava. Suspense e mistério de diferentes calibres, tendo como pano de fundo uma ampla pesquisa histórica de Portugal da época, sem se tornar, absolutamente, aborrecido, muito pelo contrário.

No desenrolar da trama, você quase pode sentir os olhos marejados de dor e espanto de Berequias, quando ele se dá conta de que muitos de seus vizinhos da Alfama, bairro lisboeta que ainda existe até hoje, estavam sendo queimados, vivos,nagrande fogueira do Largo do Rossio, bem no centro de Lisboa. Ele ouviu os gritos de desespero dos que morriam e dos que assistiam a tudo, petrificados pela dor daquela barbárie toda.

Os fanáticos religiosos, que não sabiam explicar ao populacho a razão de tanta seca e tanta peste que assolavam o país, escolheram as presas mais fáceis como bodes expiatórios: os cristãos-novos e os judeus. Com a morte violenta dos judeus e conversos ao cristianismo, eles esperavam acalmar a ira do povo contra a igreja, desviando a atenção de todos para um inimigo concreto, à mão.

Se gostar de uma história forte, comovente, triste, cheia de suspenses e ainda recheada de fatos históricos da época negra de Portugal, "O último cabalista de Lisboa" é o livro certo. A primeira vez o li em holandês e agora o estou relendo em português e devorando cada palavra, cada relato, com o coração na mão.

E não se estranhem ao se apaixonarem pelo herói da história, Berequias Zarco, pelo seu caráter forte e centrado na busca pela verdade. Um jovem homem de espírito livre e aberto, dotado de uma compreensão infinitamente grande para com o próximo, que, apesar de traumatizado pelos acontecimentos, ainda continuava isento de o maior de todos os venenos da humanidade - o ódio oriundo da ignorância.
*Lev Chaim é jornalista, colunista e publicista da FalaBrasil. Trabalhou 20 anos para a Rádio Internacional da Holanda, país onde mora. Escreve às terças-feiras no Dom Total.

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