terça-feira, 29 de junho de 2021

Dinâmica da vida humana

Pe. Geovane Saraiva*

Como é ótimo ver as pessoas edificarem aqui na terra suas moradas, mas levando em conta a habitação celestial, encontrando motivações e força no Espírito Santo de Deus, que sempre quer iluminar a todos, através das palavras e da ação de Jesus de Nazaré, contidas no Livro Sagrado, não se esquecendo de que a vida é um pêndulo, entre o respirar e o suspirar, oscilando de um lado a outro, uns mais e outros menos, entre a dor e o tédio, a alegria e a tristeza ou a angústia! É a dinâmica da vida humana, a pedir vista, na ótica da fé, com o mesmo olhar do Filho de Deus, ao estabelecer seus alicerces, há 20 séculos entre nós, no encantamento e no fascínio de uma multidão incontável de criaturas humanas. Por outro lado, na mais estreita união da Igreja com toda a família humana, constata-se, ainda hoje, um mundo profundamente desassossegado, no alvoroço de marcas e sinais de morte, frenesi impetuoso e brutal de toda natureza.

No caminho da justiça e da verdade, na compreensão de que “as criaturas do mundo são saudáveis, nelas não há nenhum veneno de morte, nem é a morte que reina sobre a terra, pois a justiça é imortal”[1]. Partindo do princípio da justiça imortal, fomos levados a corredores contrários, por veredas obscuras, na ausência da verdade de justiça, ao mesmo tempo amparados pela jurisprudência da nefasta parcialidade. Eis o grande manto a nos amparar, a demoníaca serpente, a qual tem nomes.

O Concílio Vaticano II vai na direção desse pêndulo, na Constituição Pastoral – Gaudium et Spes, ao afirmar: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”[2].

A assertiva dos últimos dias nas redes sociais – “Perdeu, playboy: STF declara Moro suspeito em todos os processos contra Lula” – levou-me a pensar no trunfo ético e moral, com o qual a sociedade brasileira passou a contar nos últimos anos. Pensou-se até no novo João Batista, naquele prenúncio de tempos novos e messiânicos, mas o que há de se notar mesmo, como lucro maior para o povo brasileiro, é uma abissal frustração, acompanhada da embusteira, falsa e ilusória esperança.

Pela expressão tão repetida na nossa civilização cristã “Quem viver verá”, notam-se, no imaginário religioso das pessoas de boa vontade, ilusões e incoerências plantadas no coração do nosso povo, tão desejoso do “novo”, na busca da verdade e da justiça, além da crença no Deus único e verdadeiro, como um acordar inflamado e coerentemente justo, na direção do absoluto ou da imortalidade.

A despeito do assunto acima, “nada de diversão”, aliás, acho inoportuno comparar o justiceiro Sérgio Moro a um playboy, porque os playboys, oriundos da burguesia ou do baronato, eram pessoas de uma época e cultura que curtiam a vida a seu modo, não sendo de natureza tão malévola, mas, certamente, alimentavam sonhos, embora passageiros. Lembre-se de que a vida é um pêndulo, entre o respirar e o suspirar. Quem viver verá.

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

 


[1] Cf. Sab 1, 14.

[2] Cf. Gaudium et Spes. Igreja no mundo contemporâneo, n, 1.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Deus magnífico, gracioso e encantador

 Pe. Geovane Saraiva*

Antes de mais nada, nossa homenagem ao Pe. Giovanni Saboia de Castro (1926-2020), ordenado sacerdote em 6 de dezembro de 1953. Por ele fui batizado aos 25 de novembro de 1956, na Matriz de Capistrano-CE. Partiu o grande e sempre muito lembrado e amado vigário do bairro Montese em 30 de maio de 2020. Na certeza de que ele se encontra no contexto beatífico, no todo ou no infinito, quando o homem, ao ultrapassar a si mesmo, encontra-se no absolutamente ilimitado, como ser humano verdadeiramente humano no infinito! Quando eu estava para me ordenar sacerdote, depois da ordenação diaconal, em 10 de janeiro de 1988, ele me propôs ajudar nas despesas que eu iria ter pela frente, referentes ao sacramento da ordem. Nunca esqueci seu gesto gracioso, vindo do seu bom coração! Dizia, orgulhoso, ser eu seu afilhado. Também gostava, por meu nome, Geovane, ter sido em sua homenagem. Nele, quero incluir todos os padres falecidos ultimamente.

Não hesitar diante da graça de Deus que nos santifica, que será sempre um benefício divino, de um Deus inteiramente livre, sendo sempre dadivoso, além e acima da natureza criada, podendo ser concebível ou criável, como um dom que de algum modo, ou de alguma maneira, é preciso ser conquistado[1]. Deus é magnífico, imenso e encantador, na sua divina bondade, e é bondade sem limites na simplicidade e na humildade, bondade mesmo de Jesus, pobre e de uma compreensibilidade e candura inequívocas.

Só quem é capaz de assimilar a grandeza de Deus, naquela compreensão do que é imprescindível num coração de pobre, que quer se fazer com Jesus despojado, que esteja apto a acolher essa grandeza divina, na pequenez da existência humana. Urge, portanto, manter a chama da vida interior, na contemplação silenciosa, no desejo de Jesus de Nazaré, de ser fermento na massa, fermento esse que precisa ser olhado, de tal modo que possa, sim, com sua ação generosa crescer e, misteriosamente, fermente toda a massa.

Como é maravilhoso quando as pessoas, e aqui o Pe. Giovanni Saboia de Castro em meio às situações de relativismo do mundo, com propostas ilusórias de métodos fáceis, descobrem nos místicos ou nos santos a importância da presença de Deus, de se encontrar e de se encantar com o Senhor, num entendimento consciente e cristalino, manifestado no paradoxo do cansaço, no que é passageiro! São aqueles que, de verdade, estão dispostos a se aventurarem ou querem andar na estrada do espírito, de no itinerário da vida interior caminhar pelos seus corredores, como no exemplo de tantos santos e santas que nos precederam, e que encontraram com seu apanágio no único necessário e absoluto: Deus.

Não escolhemos viver, mas vivemos e existimos. Que se convença sempre mais de que viver é pura gratuidade de Deus, mesmo em meio às precariedades da vida, constantemente ameaçada, mas sem perder a esperança na eternidade, na realidade terrestre, de no céu vermos Deus com a face descoberta (cf. 2 Cor 3, 18). Livrar dos desafios de tudo posto como empecilho ou limites, além de ferir, dividir e amarrar, como na seguinte afirmação: “Com as mãos cheias, com o gesto de prazeroso regozijo e ao mesmo tempo generoso, num imperturbável contentamento”[2].

A despeito do definitivo e da glória futura, no sonho da mais absoluta realização, como na assertiva de Leonardo Boff: “Concedei, Senhor, aos que estão morrendo e decidindo por vós, a graça de um rápido amadurecimento humano e divino, para que, num acendrado acrisolamento, possam desabrochar totalmente em vós”[[3]. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).



[1] Kloppenburg, Frei Boaventura. Colheita da vetustez, p. 12.

[2] Boff, Leonardo. A vida para além da morte, p. 73.

[3] Boff, Leonardo. A vida para além da morte, p. 66.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Alegoria e fábula, sim!

Pe. Geovane Saraiva*

No encontro de Jesus com a samaritana na beira do poço, no capítulo quarto do Evangelho de São João, o evangelista dos símbolos narra em torno de duas coisas: dupla sede e água. Vemos que se inicia na sede e clamor por água, mas que, no decorrer do diálogo, quem pede é quem dá água. A alegoria maior cai em quem tem as condições de tirar água do fundo do cacimbão e acaba manifestando sua sede maior, sede das sedes, indicando que ninguém é só água e muito menos só sede.

Todos nós somos constituídos, numa simbiose interativa, além de sede e água, de ar e chuva, de fauna e flora, inseparáveis. Inclusive eu disse alhures: “No mistério do Universo, que os seguidores de Jesus de Nazaré, a partir de seu olhar terno e afável, jamais duvidem de Deus encarnado e revelado no Filho, que quer nosso compromisso, ao dizer não à poluição e à destruição ambiental, protegendo e conservando a vida, no que existe de mais belo e precioso”.

Nesse sentido, o encontro da água com a sede, no exemplo acima, torna-se possível no processo evangelizador, um verdadeiro milagre. O desafio maior é a bravura destemida de revelar a própria sede. Temos um belo exemplo de Jesus em duas ocasiões: diante da mulher, na sua busca por água, e lá no lenho da cruz: “Tenho sede”.

A riqueza dos gêneros literários encontrados na Bíblia só corrobora o conhecimento do tesouro da nossa fé, qual seja o texto sagrado indispensável pela sua importância, acrescentando, aos eficazes meios, o estudo das Sagradas Letras, na esperança messiânica e apocalíptica, na alegoria do cedro majestoso e magnífico, num Deus que diz e faz, promessa que se realiza em Jesus de Nazaré. 

No mundo amplo e vasto da literatura sagrada, em seus gêneros literários, nem tudo é possível ver ou perceber, mesmo sendo permeado pelas relações socialmente humanas, as quais estão presentes de muitas maneiras na vida das pessoas, lá onde elas se encontram, com suas atividades, chegando até o ponto da exaustão, notando-se sempre deficiências, fragilidades e limitações, no que diz respeito à simbologia ou ao gênero alegórico, e mesmo ao enredo das fábulas, naquele envolvimento mais abrangente e universal a respeito do Livro Sagrado.    

Na maior de todas as obras literárias, a meu ver, o Livro Sagrado tem diversos estilos de gêneros literários, seja pelo lado poético, pelo lado profético, pelo lado apocalíptico, pelo lado sapiencial, dentre outros. Os Evangelhos são considerados um gênero literário, não prescindindo do contexto biográfico histórico da vida de Jesus de Nazaré, tão evidente no final do Evangelho de São João: “Muitas outras coisas fez Jesus, as quais se se escrevessem uma por uma, creio que nem no mundo todo poderiam caber os livros que seria preciso escrever” (cf. Jo 21, 25).

Aventura maior e fabulosa aparece na narrativa dos feitos de um herói nacional, como, por exemplo, Abraão, Gedeão e Davi. No gênero épico aparecem as narrativas de pessoas com façanhas militares. Lembramos a vida dos israelitas no deserto e a conquista de Canaã. Estão também a tragédia e a história da decadência de um indivíduo, da fama e honradez, desastre e miséria (Sansão, Saul e Salomão); também estão no romance, ao descrever a vida amorosa entre um homem e uma mulher, tão cristalino no gênero literário dos livros de Rute e Cântico dos Cânticos.

Os Evangelhos contêm todo um aparato biográfico sobre Cristo, que as comunidades transmitiam oralmente e depois os evangelistas escreveram. Na verdade, na boa-nova de Jesus, encontramos sua pregação e a atividade da comunidade primitiva: parábolas, narrativas de milagres, cânticos, provérbios, sentenças do Antigo Testamento encaixadas no texto, genealogias, histórias da infância de Jesus. Se pudesse afirmar, falaria de fábulas.

Para concluir, mais que factível, temos em Esopo uma constituição de histórias, nas quais os animais eram os personagens. Por meio de diálogos entre os bichos e das circunstâncias que os envolviam, eles procuravam transmitir sabedoria, mas atingiam a índole e o espírito moral da criatura humana. Assim, os animais, nas fábulas, tornam-se exemplos para o ser humano, pelos personagens, entre outros: a tartaruga e a lebre; o lobo e o cordeiro; o asno e a carga de sal; o lobo e as ovelhas; o cervo e o leão; o cão e a sombra; o lobo e o cão.

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

Nome de Deus: amor e esperança

Pe. Geovane Saraiva*

Pelo projeto redentor e salvífico do Reino, que a Deus pertence e que é confiado aos seres humanos, somos chamados a oferecer nossa generosa resposta. Agora, sabemos que por trás de cada pessoa manifesta-se uma complexa história, evidentemente com seus traços ou sinais peculiares, ação da bondade de Deus. Dom Helder Câmara se enamorou pelo mesmo Deus e, ao nos deixar há 21 anos, em 27 de agosto de 1999, foi uma dessas pessoas que perceberam o mistério do Cristo redentor, desfigurado nos irmãos e nas irmãs, como na seguinte assertiva: “Nos rostos gastos pela fome e esmagados pelas humilhações vi o rosto do Cristo Ressuscitado”.  

Dom Helder Câmara, consciente da bondade de Deus, afirmava: “Teu nome é e só podia ser amor”. A nossa súplica para com o nosso bom Deus é no sentido de que Deus possa ser sempre mais amado, concretamente, nas suas criaturas e, aqui, através do Servo de Deus, instrumento de vosso amor e vossa paz, nas suas contundentes profecias em tempos de crises: “Quando houver ver contraste entre tua alegria e um céu cinzento, ou entre tua tristeza e um céu em festa, bendiz o desencontro, no aviso divino de que o mundo não começa nem acaba em ti”.

A força de seu vigor e de seus sonhos, numa vida marcada por uma trajetória excessivamente fecunda e pelo seu inquestionável legado à humanidade, o credenciou a ser patrimônio do povo brasileiro, cidadão planetário, fazendo-nos lembrar do apóstolo Paulo, em seus sonhos, ações apostólicas e viagens missionárias. Anunciou o Reino por uma Igreja simples, voltada para os empobrecidos, vulneráveis, proclamando em alto e bom tom a não violência.

Sua incisiva atuação de Profeta da Paz também o qualificou para diversos prêmios nacionais e internacionais, sendo o brasileiro por quatro vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz. A Lei n.º 13.581, de 26 de dezembro de 2017, declarou Dom Helder Câmara como Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos, pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, e também Patrono dos Direitos Humanos de Pernambuco, honraria da Assembleia Legislativa, Lei n.º 17.006, do referido estado, aos 11 de agosto de 2020.

Dom Helder Câmara nos ensina o sentido da verdadeira e autêntica fraternidade, permitindo, no segredo do nosso interior, auxiliados pelo que é relativo, se preciso for, chegarmos ao essencial, no menino misterioso e pobre da manjedoura, mas numa ansiosa vontade de galgarmos a esperança, como nas próprias palavras: “Quais sementes desejo espalhar pela terra? Sementes de paz, amor, compreensão e esperança. Há tanto desespero, desengano, decepção, frustração e desesperança! Sementes de esperança, sem dúvida, chegariam em boa hora”. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).


 

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Santo Antônio: folclore e sabedoria

 Pe. Geovane Saraiva*

Santo Antônio foi uma grande figura humana de coração, exemplo e referencial para os cristãos. Brilhante foi sua inteligência e exímio conhecedor do Livro Sagrado, destacando-se, igualmente, pela profecia, sem esquecer sua caridade com os pobres e necessitados. O ideal cristão do referido santo consistiu em colocar sua vida e sua segurança nos valores eternos, convencendo-se de que eles jamais passarão. Tornou-se universalmente conhecido e venerado pelo povo cristão, em toda a extensão da terra.

Que saibamos olhar para Santo Antônio como pai e protetor, amigo do menino Jesus e filho querido de Maria Imaculada, que, ao anunciar o Evangelho de Jesus, procurou duas coisas: a glória de Deus e o bem da criatura humana. Ao oferecer pão aos necessitados, suplicava para que nunca faltasse o pão de cada dia, pelo honesto trabalho, dando prioridade à busca do pão vivo, descido céu, que é o próprio Jesus Cristo encarnado na história da humanidade, alimento para a vida do mundo. A partir da vida de Deus na eucaristia, aqueles que ao amigo do Menino Jesus recorram e implorem sua proteção, que jamais deixem de ser escutados.

O legado de Santo Antônio é por demais abrangente, na implacável defesa da família, ajudando-a a se encontrar com Deus, no sentido de melhor cumprir sua missão, resistindo aos perigos e ciladas do inimigo, num mundo tão diverso e contraditório. Na oração dos namorados, na preciosa e pulsante fase da existência das pessoas, vemos Santo Antônio constantemente invocado como protetor, no sentido de que as coisas fiquem sempre claras. 

Que as pessoas que alimentam o sonho da vida conjugal, pelos méritos de Santo Antônio, saibam aproveitar e sorver do precioso tempo que precede o matrimônio. Pela luz divina, cheguem ao conhecimento um do outro, segundo o projeto do nosso bom Deus.

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

quarta-feira, 9 de junho de 2021

A vontade de Deus na vontade humana

 Pe. Geovane Saraiva*

Jamais devemos hesitar em meio a ocasos e cruzes da vida, nós, criaturas humanas, em nossos deslocamentos, no modo de pensar e de agir e nas contradições, com nossa realidade física e existencial, em prantos, lamentos e lágrimas: é o peregrinar humano rumo àquele êxodo final. Que nossa mística e nossa força motivadora estejam em Jesus – eucarístico, pão da vida, pão descido do céu –, evidentemente numa atenta dinâmica e enérgica retidão, no sentido de se dar uma resposta à gratuidade de Deus. Volto-me mais uma vez ao espírito de Santo Agostinho, que foi levado pelo amor à eternidade e à verdade, cada dia e passo a passo, externando sempre o sentimento amoroso, do âmago do coração, aspirado na acentuada avidez de se conquistar e usufruir daquela divina e celestial cidade[1], cuja suprema autoridade é Jesus de Nazaré.

O desafio é viver em conformidade com a vontade de Deus, que, segundo o apóstolo Paulo, é a celebração da Ceia do Senhor, a proclamação do mistério da morte de Cristo, na qual esse mistério se torna eficaz e satisfatoriamente compreensível aos que procuram haurir dessa fonte, usando de todos os meios, inseridos verdadeiramente na celebração do banquete do Senhor[2]. Ao participarem do referido banquete, entram os fiéis em comunhão com o corpo e sangue de Cristo, fazendo com que a comunidade, totalmente envolvida pelo mesmo mistério, se transforme em partícipe do sacrifício, tendo um só corpo e uma só alma como resultado para consigo mesmo.

Que fique claro que a Ceia do Senhor é o elemento a causar o maior júbilo, essencialmente escatológico e imorredouro, claramente presente, longe de qualquer dúvida, desde a origem como princípio da vida cristã da humanidade. Usa-se o termo “banquete messiânico” em alusão a uma grande, lúcida e viva experiência de Deus, tendo como centro a palavra do Senhor, que é vida. A Ceia se confunde com a Páscoa do Senhor, vida nova a mover a humanidade, o Espírito Santo que nos anima, numa comunhão íntima da criatura humana com Deus: criador, salvador e santificador. A eucaristia e os demais sacramentos, ou mistérios, vividos na liturgia da Igreja, de um modo contemplativo, querem, pela vontade de Deus, penetrar, progressivamente, na realidade da vida humana e no mundo.

O Filho quer fazer de nós verdadeiros adoradores do Pai (cf. Jo 4, 24), filhos de Deus participantes de sua filiação única (cf. 2Pd 1, 4). O Espírito que Jesus enviou do Pai para sua Igreja inspira, estimula, sustenta todo esse projeto de vida. É preciso mudar o nosso conceito de oração, e em primeiro lugar escutar o que Deus tem a nos dizer[3]; colocar o nosso querer no querer de Deus; também nossa vontade na vontade de Deus; e ainda nossa liberdade na liberdade de Deus. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).



[1] RAMOS, Manfredo. A Ideia de Estado na Doutrina Ético-política de S. Agostinho. Ep. 155, n. 1, pp. 296 e 311.

[2] VIER, Frederico. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, 1977, p. 260.

[3] LORSCHEIDER, Aloísio. Cf. Variações sobre a Oração Cristã, Franciscanos do RS, p. 89.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Apanágio dos amigos de Jesus

 Pe. Geovane Saraiva*

A missão salvífica de Jesus, na sua intimidade e comunhão com o Pai, tão evidente na sua oração sacerdotal, revela seu verdadeiro rosto ou identidade. Jesus contava com uma única alegria e satisfação: fazer a vontade do Pai e levar a bom termo a sua obra. É este seu alimento e júbilo, não necessitando de mais nada (cf. Jo 4, 34). Só em Jesus é possível perceber o fundamento da oração dos seguidores de Jesus de Nazaré, apoiados e enraizados na sua relação com o absoluto. Esse fundamento compreende sua paixão pelo Pai, como nas palavras do apóstolo Paulo: “Quer comais, quer bebais, quer façais qualquer outra coisa, fazei tudo em nome de Jesus, para a glória de Deus Pai” (cf. 1 Cor 10, 31; Cl 3, 17).

Pensemos, pois, num Deus que ama em profundidade o mundo, e nele a criatura humana. A oração dos cristãos, sendo o apanágio progressivo da verdade na caridade, rumo à eternidade[1], deve iluminar a criatura humana, no sentido de que se faça a vontade do Pai, aqui na terra, mas que seja realizada lá no céu. A vida cristã, animada pela oração, corresponde, numa atitude espiritual de confiança ilimitada, à entrega espontânea, num estreitamento filial e ininterrupto, refugiando-se em Deus, em todas as necessidades. É esse o espírito de oração contínua de Jesus, podendo prevalecer o mesmo espírito que Jesus quis imprimir na mente e no coração dos discípulos.

Os Evangelhos nos apresentam uma imagem de Jesus, no desmedido e colossal exemplo de sua entrega como um hino de louvor ao Pai. Jesus reza com muita frequência: faz orações comuns, como a bênção antes das refeições, reza antes de atos e decisões importantes, nos milagres, no convívio com os apóstolos, na solidão noturna e na presença dos discípulos, também quando seu espírito se encontra alegre, sem esquecer da agonia no Getsêmani!

“Entremos e, prostrados, o adoremos, de joelhos ante o Deus que nos criou” (Sl 94). Que seja uma oração universalmente ecumênica, como nas palavras do poeta e místico alemão, protestante, em pleno século do iluminismo ou das luzes, ao erguer sua voz para lembrar aos homens, mas num compromisso de súplica: “Deus aqui está presente, adoremos! Com santa reverência, entremos na sua presença. Deus está aqui no meio: tudo se cale em nós e o íntimo de nosso peito prostre-se em sua presença. Quem quer, o conheça, quem pronuncie seu nome, baixe os olhos à terra e para ele dirija o coração”[2].

Prescindir do valor da oração seria como que se indispor contra aquele que tanto amou o mundo que lhe deu o seu Filho único (cf. Jo 3, 16), também querendo realizar inteiramente a vontade do Pai, fazendo-se obediente até a morte e morte de cruz (cf. Fl 2, 8). A oração deve ser consequente, que leva à mesma atitude da Santa Mãe de Deus, Maria, fonte de alegria, ao aflorar nos seus lábios, naquela magnífica e sublime visita à sua prima Isabel, ao pousar Deus seu olhar, na sua insignificância, mas que nela se realizam maravilhas, na exaltação dos empobrecidos e humildes, os favoritos de Deus. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).



[1] AGOSTINHO, Santo. Ó eterna verdade, verdadeira caridade e cara eternidade. Ep. 155, n.1.

[2] CANTALAMESSA, Raniero. “Subindo ao Monte Sinai”. Pág. 180.

Fotos: Pe. Geovane Saraiva/sertão de Canindé/Aratuba-CE.