quarta-feira, 31 de março de 2021

Ditadura: triste lembrança

 Dom Zanoni Demettino Castro*

Triste lembrança! Neste ano de 2021 somos chamados a fazer a memória das nossas alegrias e esperanças, das nossas tristezas e dores.

Neste momento, lembramos, sobretudo, os 57 anos da Ditadura, um dos mais dolorosos episódios da história do Brasil, que com o ato de força de 1º de abril, significou um golpe profundo para as instituições democráticas e durou longos 21 anos, jogando o País numa noite de terror, prisões, torturas, mortes e desaparecimento de pessoas.

Nasci e cresci num ambiente de forte resistência a essa situação. Aprendi, desde pequeno, que nem tudo que aparecia nos jornais e televisão correspondia à verdade.

Conheci homens e mulheres honrados, muitos, imbuídos pela fé, que se engajaram seriamente contra este sistema, e, por esta razão, foram tratados como “subversivos”.

 Milhares de pessoas foram presas, torturadas e exiladas. Muitas foram mortas. Políticos tiveram seus mandatos revogados; cidadãos, funcionários públicos e militares foram demitidos; estudantes expulsos das escolas e Universidades.

Imperava a Lei de Segurança Nacional.

Lembro-me muito bem do meu pároco, cuidadoso e prudente com as palavras, quando nos ensinava o Evangelho, falando-nos do amor, da justiça, da democracia e da liberdade.

Tocava no fundo do nosso coração as palavras do grande pastor e profeta, Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, silenciado pela ditadura: “quando dou pão aos pobres me chamam de santo, quando pergunto pela causa de sua pobreza me chamam de comunista.”

Esta data de forma alguma poderá ser esquecida.

É, sem dúvida, uma oportunidade rica de refletirmos e debatermos a respeito da construção social e política do nosso país. Tempo propício de levantar questões sérias: Por que o Brasil acolheu esse Regime ditatorial e autoritário em 1964? Como a ditadura civil militar redesenhou esse País Continente e quais são hoje as suas marcas mais profundas? Como foi possível passar do autoritarismo para a Democracia?

Nossos jovens precisam saber o que de fato aconteceu. Por que tantos meninos e meninas daquela época entraram nesta luta? Quais eram os seus sonhos e a razão de tamanha coragem?

 Lembro-me, como se fosse hoje, da paródia da música “Tristeza”, que cantávamos no Colégio em que eu estudava em Brasilia, no final dos anos 70, com muito receio, mas com segura nitidez e grande orgulho.

 Pedíamos o fim da ditadura:

 “Figuerêdo, por favor vai embora, é o povo que implora, esperando seu fim. O meu salário diminui a cada dia, já é demais o meu penar. Quero de volta a Democracia. Quero de novo votar”.

Havia um desejo de mudança, um sonho de justiça e liberdade.

Vejo com bons olhos o grandioso esforço da Comissão da Verdade. Por outro lado, percebo que muitos querem minimizar esse período de exceção. Chegam a afirmar que a Ditadura não foi tão dura assim e até defendem o seu retorno como remédio à violência e corrupção. São os mesmos que apoiam mortes, criminalizam os movimentos sociais e demonizam a política.

Graças a Deus a Ditadura foi vencida.

Foi uma vitória da população brasileira, o sonho das Comunidades Eclesiais de Base que, desde os meados dos anos 70, com outras forças da sociedade, indo às ruas, denunciando torturas e mortes, articulando-se e mobilizando-se em favor da anistia, participaram de uma das mais espetaculares campanhas que este pais já assistiu, a Diretas já!

A luta pela consolidação da Democracia continua. Ditadura nunca mais. #DitaduraNuncaMais

*Arcebispo de Feira de Santana, Bahia

segunda-feira, 29 de março de 2021

O véu rasgado de cima a baixo

Padre Geovane Saraiva*

A liturgia do domingo de Ramos nos introduziu bem no núcleo ou miolo do acontecimento inaudito e inefável, o mais elevado da nossa fé: o mistério da paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus. Da nossa parte cabe acolher, louvar e bendizer aquele que, sendo aclamado rei, não teve medo de assumir, como legítimo e verdadeiro servo, a experiência humana até a morte, e morte de cruz.

Em substituição ao véu de separação ficou a ponte que liga os homens pecadores, perdoados pelo sangue de Jesus Cristo, e pelo próprio Deus. Deve-se perceber no véu uma profunda e misteriosa simbologia, em que Cristo é a razão – e não se encontra outra – como única via para se chegar ao Pai.

Detenhamo-nos, por ocasião do mistério pascal, a partir do véu da cortina do santuário, que se rasgou de alto a baixo em duas partes, na suprema angústia, por ocasião da crucificação e morte de Jesus. Entendamo-la como o ápice, caminho da vida de nós, seguidores dos passos de Jesus de Nazaré, no sentido da simbologia do sacrifício interior, indo muito além do véu do templo, como sacrifício antigo, com a marca da exterioridade (cf. Ex 26, 31-35).

Jamais prescindir do eixo salvífico, como nos assegura o apóstolo Paulo, na carta aos Filipenses: “Jesus Cristo, sendo de condição divina, não se apropriou dessa condição, mas, ao contrário, ele se esvaziou e assumiu a condição de servo obediente, até a morte, e morte de cruz”. E continua: “Foi por isso que Deus o exaltou e deu um nome que está acima de todo nome, de modo que, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra e toda língua confesse, de modo bem elevado, que Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai”.

 Com o véu rasgado de cima a baixo, aquele que cobria o espaço mais sagrado do templo, num clima de mais absoluto silêncio, tem-se a nítida e mais expressiva alegoria de que a separação entre Deus e o ser humano ficou para trás. Agora, com Jesus, nosso Rei, Mestre e Senhor, caminhamos na fé e na esperança de que não estamos mais enganados, mas que vamos ver e participar da novidade maior, sendo novas todas as coisas.

Rasgar, sim, de cima a baixo, o véu malévolo, imprestável, improfícuo e deplorável do obscurantismo, da insciência e do negacionismo. Tudo a partir do contexto maravilhoso de ver que o Servo de Javé resiste ao sofrimento, mesmo em meio à desolação e ao abandono, por meio da obediência na fé, confiante até o fim na promessa do Pai! Sua fidelidade em persistir e não se desviar da missão nos enche de esperança, na certeza de não sermos jamais confundidos nem desiludidos. Amém!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

sexta-feira, 26 de março de 2021

Rosto desfigurado de Cristo

 Padre Geovane Saraiva*

Na liturgia da Semana Santa, o Cristo na cruz, desfigurado e sem aparência, abre-nos um novo caminho, numa reflexão solidária, a partir do rosto do irmão, na grande maioria dos desfigurados. Sim, faz-se necessário refletir as vozes de prantos e lamentos que já não mais se ouvirão, igualmente os clamores angustiantes, os quais cessarão (cf. Is 65, 17s). A profecia de Isaías, na sua forma estimulante, ou exaustiva, aponta para a felicidade, com novos tempos – messiânicos – no sonho de uma realidade plenamente reconciliada e pacificada em Deus, sendo prenúncio da mais completa simetria e sintonia entre o velho e o novo, com Deus, o mundo e seu povo: “...novas todas as coisas”.

É a grande novidade em Jesus de Nazaré, o Filho amado do Pai, que, pelo seu anúncio e sua própria voz, traz a esperança da promessa, jubilosa e alegre, para todo o povo (cf. Lc 2, 10). A lógica salvífica da fé vai ao encontro da humanidade, mas no sentido de antever em Cristo o homem novo, na disposição e no empenho consciente do seu próprio protagonismo, compromissado com um mundo mais inclusivo, na confiança expectante de que Deus enxugará toda a lágrima dos olhos humanos, pois nunca mais haverá nem morte, nem luto, nem clamor; nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas passaram (Ap 21, 4).

A face do Cristo desfigurado quer ir além do rosto humano, quer um coração humano modelado, num rosto alegre, feliz e transfigurado, já aqui neste mundo, reflexo de uma realidade mais de acordo com o desígnio, ou propósito, de Deus. É evidente que nunca se pode deixar de ver no rosto o cansaço, a dor, a aflição, o júbilo, a severidade e a dureza. A inspiração e o conselho são para convencer de que Cristo, com seu rosto desfigurado, se torna visível à imagem de Deus. Esse rosto revelador da glória divina, no entanto, foi alvo do escárnio dos homens, como nos assegura o profeta Isaías: “Ofereci (...) as faces aos que me arrancavam as barbas, não ocultei o rosto às injúrias e aos escarros”.

No mundo em pandemia, com a Covid-19 desfigurando e matando criaturas humanas em número elevadíssimo, acreditamos que as vacinas nos oferecem proteção, sim, contra esse vírus nocivo, impiedoso e letal. Cristo, porém, com seu rosto sem aparência, quer ir muito além; quer nos colocar diante de males da sociedade e do mundo: apatia, negligência, desigualdade, indiferença, insensibilidade. Quer todos diante do desafio maior, considerando a realidade, nos seus sinais de vulnerabilidade, sobretudo nos que surgirem com poder devastador, sendo caos social, à luz da ética, por um mundo mais inclusivo, na busca dos bons costumes e dos princípios morais.

Estamos todos no mesmo barco, o do mesmo Deus que fez brilhar a luz em meio às trevas, não prescindindo do antagonismo entre ricos e pobres, muito claro e mesmo acintoso, no mundo que se distancia da proposta da justiça, da paz e da dignidade. Que se possa perceber o rosto da humanidade querendo dialogar, contendo nos olhos a fé e a esperança para ver o irmão, mesmo desfigurado, face a face. Todos por vacina, sim, para não obstaculizar, barbarizar e flagelar a vida e a própria história! Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, Blogueiro, Escritor e integra a Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

terça-feira, 23 de março de 2021

Dia Mundial da Água

Padre Geovane Saraiva*

No aviso de Deus, de concluir uma aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá, todos são convidados, de coração aberto, a renovarem essa aliança, que é a promessa de Deus. Renovar a aliança significa, evidentemente, seguir os passos de Cristo, na doação generosa e na oferta da própria vida, aliança esta imprimida no interior, nas entranhas e no coração da criatura humana, pela renovação espiritual do batismo, mas na alegoria dos consequentes feitos do grão de trigo, ao morrer e desaparecer; germinar, crescer e  produzir muitos e bons frutos. 

Na nova aliança está a maior prova de amor e fidelidade do Filho, na sua incondicional obediência ao Pai. O que se quer de Deus para todos é a graça da sua renovação espiritual, como fonte de água viva a saciar a sede da humanidade, que, conforme as palavras do Papa Francisco, “para nós, crentes, a irmã água não é uma mercadoria, é um símbolo universal e é fonte de vida e saúde”. Segundo dados da ONU, 40% da população mundial não têm acesso à água. A comemoração do Dia Mundial da Água (22 de março) bem que nos ajuda a perceber a magnitude dos desafios de toda natureza. 

Um louvor de gratidão pela irmã água, criatura de Deus, que, segundo Francisco de Assis, nos ajuda a recordar as inúmeras vezes em que nos foi solicitado o obsequioso gesto de lavar nossas  mãos, mais ainda agora como medida preventiva contra a Covid-19. Muito oportuno e conveniente pensar em todos aqueles, por ser a irmã água uma mercadoria preciosa e distante do alcance de um número incontável de pessoas, sem poder abrir suas torneiras para lavar as mãos e o corpo, isso porque nem elas mesmas a possuem, tornando um sonho muito remoto, aquele mesmo sonho elementar que aqui no Brasil já se escutou no passado: “Água e saneamento básico para todos”. 

Considera-se o relacionamento humano, com a pandemia a fragilizar o mundo, mesmo todo interligado, como muros de separações. Com todas as facilidades e meios modernos de aproximação do mundo hodierno, temos o maior e mais grave de todos os males em questão, pelo drama polarizante no conflituoso convívio, com negativas repercussões globais, em meio ao que existe de mais malévolo e deplorável: obscurantismo, insciência e negacionismo. 

Água é essencial à vida e sem ela a criatura humana não pode jamais subsistir, o gado e todos animais se extinguem, os campos se transformam em áridos desertos, num sinal e símbolo da morte. Portanto, comemorar o Dia Mundial da Água, na restauradora compreensão de que água para todos pode mudar a vida e a própria história, significa dizer que a vida pede coragem, com respostas que venham em socorro e favoreçam a humanidade no seu todo. Esse é o grande e maior desafio.

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).


sexta-feira, 12 de março de 2021

Vida sim, vacina sim!

Padre Geovane Saraiva*

Aqui fica nossa solidariedade, diante da realidade brasileira, marcada pelo ultraje, numa insensibilidade, indiferença e cinismo estarrecedores do governo brasileiro, num não aos quase trezentos mil mortos pelo impiedoso, nocivo e letal coronavírus. Vemos que pouco foi feito na esfera federal, no sentido de barrar a pandemia no Brasil, a ponto de se achar normal e natural o sistema de saúde colapsado. O povo não pode mais pagar com sua própria vida. Deus vem em socorro dele, no reerguimento e reconstrução de sua dignidade de filhos de Deus, no clamor por vida sim, vacina sim!

Partindo do princípio de que não adianta simplesmente repetir o mandamento maior, acima de tudo, é uma necessidade vital para a vida inteira, pensando, evidentemente, na importância e no valor de nossas iniciativas e ações em favor da vida, na certeza de algo que deve sustentar tudo, naquilo que é permanente e absoluto, que nos parece distante: o reerguimento e a reconstrução. É a esperança, sim, em meio à pandemia, a contrastar e duelar, deploravelmente, com a fatalidade da insciência, que além de sombria e necrófila, também vocifera incoerentemente, querendo confundir a boa-fé da nossa gente, com blasfêmia e despautério, no slogan: "Deus acima de tudo".

A fé cristã tem uma resposta consequente para todas as questões, que exigem respostas sólidas, e não simplistas e triviais, mas longe do envolvimento com respostas deletérias, obscurantistas, conspiratórias e infantis, sem valor algum. Não há tempo a perder; negacionismo é sinônimo de morte, justamente ao se viver num momento, mais do que nunca, com todos os desafios, sobretudo o de assumir e carregar a cruz do dia a dia. É preciso crer e ter uma fé lúcida e segura, deixando de lado as tolices existentes no caminho e também as superstições e as descrenças.

Finalizo com a nota do Pacto pela Vida: “O povo não pode pagar com a própria vida! Nós, entidades signatárias do Pacto pela Vida e pelo Brasil, sob o peso da dor e com sentido de máxima urgência, voltamos a nos dirigir à sociedade brasileira, diante do agravamento da pandemia e das suas consequências. Nossa primeira palavra é de solidariedade às famílias que perderam seus entes queridos. (...) Sabemos que a travessia é desafiadora, a oportunidade de reconstrução da sociedade brasileira é única e a esperança é a luz que nos guiará rumo a um novo tempo”. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

terça-feira, 9 de março de 2021

Brasil dos maldosos e dos caçoadores

 Padre Geovane Saraiva*

Pela figura exemplar e emblemática de Santo Agostinho, que o Senhor nos dê a graça de romper nossa surdez: “Tu me chamaste, clamaste por mim e teu clamor rompeu a minha surdez”. É necessário ter um coração bom e grande, capaz de compreender o dom da liberdade, com bons costumes e bons hábitos, na confiança e ânimo de começar e recomeçar. Apoiados em sua sabedoria, que possamos descartar todos os males em nosso mundo, no qual estamos inseridos, cheio de valores passageiros, sem esquecer os prazeres da vida, como se fossem absolutos e, embora imprescindíveis, são assumidos pela humanidade como fossem sagrados.

As divisões polarizantes são visíveis, de um espírito odioso de guerrear, levando em conta o mau uso dos recursos humanos, no nosso mundo atual, que é uma aldeia ameaçada, com indicadores de que sua extinção é possível. Constata-se, nesse sentido, um esforço gigantesco, desumano e demoníaco, em quase todos os lugares, tanto entre as nações, quanto nas iniciativas de diversos grupos e classes sociais, como se não valesse mais o conselho do doutor da graça, Santo Agostinho: “Nas coisas necessárias, a unidade; nas contingentes, a liberdade; mas em tudo, a caridade”.

Jesus, o Senhor da vida e da história, está nas alturas, sim, mas sem se deixar ver naqueles que sofrem, chegando-se mesmo a pensar, sem medo de duvidar, na notória e sempre mais crescente divisão entre ricos e pobres; países, classes, grupos e indivíduos. É a humanidade dividida em bandos, num antagonismo crescente, de inimigos a lutarem com todas as forças e meios disponíveis, no intuito de aniquilar o adversário, esquecendo-se do verdadeiro adversário: o egoísmo e seus frutos. Convenhamos: tudo que existe de ruim é fruto da maldade humana.

Mais do que nunca a humanidade precisa acreditar no espírito e reconciliação, mas a partir da entrega de Cristo, a ponto de morrer na cruz, no seu gesto maior e supremo, no amor pelos últimos da sociedade, de forma carismática, na fidelidade ao Pai. Que o espírito quaresmal, presente na nossa mente e no nosso coração, estimule a aproximação do filho de Deus em todos, imitando seu gesto generoso, com o desejo de um mundo reconciliado, restaurado e pacificado no amor.

Fica o nosso “não” ao Brasil como reprovação da eloquente retórica, mas de tal modo omissa e pusilânime, além de assassina e covarde, ao se desprezar com veemência a dignidade da vida nos seus sinais sagrados de esperança. Que todos nos sintamos desafiados a abraçar a vida e, igualmente, a interditar a estrada da morte, de risos cínicos e caçoadores, afastando-nos do coração aquele ódio, indicador da barbárie humana. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

quinta-feira, 4 de março de 2021

A Cidade de Deus de Santo Agostinho

Padre Geovane Saraiva*

O grande Santo Agostinho, no seu rigor espiritual e intelectual, ao compreender e externar o projeto das duas cidades, num coração em chamas, voltado, evidentemente, ao absoluto ou às alturas, estabelece a base de sua reflexão, a partir da invasão e saque da cidade de Roma, em 410, por Alarico, rei dos visigodos. Agostinho, abrasado de zelo na sua compulsão pela glória futura, toma a decisão de produzir a obra imortal “A Cidade de Deus”, de Civitate Dei, a ponto de ecoar por todo o mundo civilizado, indo ao encontro da humanidade, nos seus mais elevados sentimentos, contrariando asneiras, crueldades e blasfêmias do então rei Alarico.

Para quem deseja atravessar o mar da existência, segundo Agostinho, urge que se tenha por braços a cruz de Jesus Cristo. Ele, ao constatar um Império Romano em conflitos e ruínas, desenvolve o conceito da construção da “Cidade de Deus”, paradoxal à cidade terrena. Na sua concepção grandíssima, ultrapassa todo e qualquer parâmetro, no modo de imaginar a vida humana, pela augusta bondade divina, assegurando-nos que a mesma vida se desenvolve entre dois amores, ou entre duas forças: uma imanente, ou terrena, e a outra espiritual, ou celestial.

Assim, ele nos garante que a mesma dinâmica acontece também na história. Sem dúvida, hoje no nosso mundo, com suas teorias conspiratórias, pela proclamação do ceticismo, do obscurantismo e do negacionismo, reflete-se na vida das pessoas, mesmo aqui no Brasil, como sendo natural se reviver o brutal e bárbaro drama, do saque de Roma no século V. Longe dos “Alaricos” dos nossos dias, que esteja a humanidade convicta de não ser mais possível conceber a nossa civilização, omitindo a beleza da força e da ação solidária, geradora de paz, no sonho alegre da verdadeira esperança.

Na sua afirmação, de que a criatura humana só tem acesso ao conhecimento quando iluminada por Deus, convence a todos, sem jamais se esquecerem do postulado do doutor da graça, na sua palavra a perpassar a história: “Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a cidade terrena; e o amor a Deus, levado pelo desprezo de si próprio, a cidade celestial”.

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).