sábado, 27 de fevereiro de 2021

Descer da montanha e descruzar os braços

Padre Geovane Saraiva*

Jesus, o filho amado do Pai, ao revelar na montanha sagrada o esplendor de sua glória, na sua própria transfiguração, pede que tenhamos fé e compromisso em seu projeto divino. Ele conta com seus seguidores, credenciados e habilitados, para se transfigurarem no seu projeto de amor. Ele doa a vida pela humanidade, na sua fidelidade ao Pai, por aqueles que se encontram descartados, desfigurados e despojados de sua dignidade, como assegura Dom Helder: “No mais que comum dos dias, olhei o mais que pude os rostos dos pobres, gastos pela fome, esmagados pelas humilhações, e neles descobri teu rosto, Cristo Ressuscitado!".

No caminho a percorrer, decorrente de nossos ideais, e na escuta da voz do filho amado, o ambiente é favorável a Jesus naquela montanha sagrada, numa claridade radiante, antevendo-se seu corpo glorificado. Que Deus nos dê a graça de andar pelos mesmos caminhos, sólidos e seguros, numa luminosidade de verdadeira esperança, ao acolher a vida em comunhão com Ele, que está sempre pronto para ouvir nossa súplica, compassivo, escutando o lamento da humanidade. Ele não leva em conta suas faltas.

Na mais elevada obediência do filho de Deus, Pedro, Tiago e João são seus três amigos íntimos, testemunhando antecipadamente a glória do Senhor ressuscitado, sendo também eles presenças vivas na sua agonia do Getsêmani, revelando glória e paixão como aspectos inseparáveis, num só mistério: o da redenção da humanidade e do mundo. A transfiguração nos revela que ela é essencial à vida, precípua a qualquer encantamento ilusório, a partir do que é seguro e perene, ancorando-se no que é verdadeiro, na busca da paz e da justiça.

Que o sentimento maior e mais profundo de Deus, ao ecoar no coração da humanidade e do mundo, no seu todo, seja o do amor solidário aos olhos da fé. Quando ficamos diante das pessoas doloridas e angustiadas, pelo consequente peso da pandemia, do mais íntimo do íntimo, acreditamos que esta humanidade haverá de se reinventar, numa atenta proximidade dos fragilizados e dos empobrecidos de toda sorte.

Que possamos perceber a realidade misteriosa da transfiguração como sinal antecipado da ressurreição de Jesus de Nazaré, de modo inequívoco, diante dos pesadelos vividos pela criatura humana. A referida realidade nos propõe que descruzemos os braços, longe de conflitos e interesses pessoais desafiados: “Quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes”. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Novo tempo

Padre Geovane Saraiva*

O nosso tempo, dentro de um contexto incerto, com a humanidade a enfrentar a pandemia da Covid-19, quer uma profunda reflexão de todos nós, seguidores de Jesus de Nazaré, quando a vacina, aos poucos, passa a chegar, sendo acolhida alegremente pelas pessoas. Eis, pois, a humanidade inteira diante de um enorme e responsável desafio: o de buscar uma porta de saída ou mesmo uma janela, a apontar, evidentemente, indicadores de futuro ou caminhos de novo tempo, na teimosa realidade letal a envolver a todos.

 Às vezes, luta-se por uma mesma verdade a partir dos mais opostos e antagônicos caminhos. Aqui não, neste tempo de penitência quaresmal, na nossa caminhada para a Páscoa do Senhor, ficamos diante de um único caminho, proposto por Deus: o do Reino de Deus que está próximo (cf. Mc 1, 12-15). Urge, portanto, que sejam os nossos corações vacinados de todo mal, dentro de uma perspectiva esperançosa, iluminados pela fé do nosso Deus, nesse contexto abençoado, como um tempo de favoráveis graças celestiais, mas num olhar voltado ao ministério, muito além do pó ou das cinzas.

 
A bênção das cinzas nos leva a pensar e a refletir fortemente neste tempo de pandemia: “Ó Deus, que vos deixais comover pelos que se humilham e vos reconciliais com os que reparam suas faltas, ouvi como um pai as nossas súplicas. Derramai a graça da vossa bênção, sobre os fiéis que vão receber estas cinzas, para que, prosseguindo na observância da Quaresma, possam celebrar de coração purificado o mistério pascal do vosso Filho. Por Cristo, nosso Senhor”.


Deus, no seu filho Jesus de Nazaré, convida todos a mergulharem no deserto, que não se trata de um lugar fisicamente árido, como no sertão do Ceará, e muito menos as serras do nosso Nordeste também não são as enormes e belas dunas de areia das nossas praias. Trata-se, sim, de uma dimensão existencial, na qual se deve fazer silêncio e escutar a palavra de Deus, na busca da verdadeira conversão, e que esta se realize dentro de nós (Papa Francisco).


Todos nós, com nossas aspirações humanas, buscamos o mistério da verdade, embora por diferentes caminhos e mesmo nos impasses e nas incertezas de como é possível e onde a encontrar. Que o Deus da montanha sagrada, aquele que vence o demônio com suas astúcias e seduções, nos faça compreender e vivenciar o nosso deserto existencial: o da nossa conversão do coração. Assim seja. 


*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A lepra da intolerância e do preconceito

Padre Geovane Saraiva*

Jesus acolhe o leproso e nele quer acolher a todos. Ele diz não à intransigência, à intolerância e a todo e qualquer preconceito, especialmente os preconceitos para com a Campanha da Fraternidade Ecumênica deste ano de 2021, sem esquecer a lepra da chamada “arquitetura hostil” aos que querem viver o mínimo de dignidade. Como seria bom e maravilhoso um compromisso pela renda mínima, com fraternidade, diálogo e paz, sendo, assim, possível de se cantar ao Deus da vida um bendito!

O cristianismo quer contribuir grandemente, valorizando e acentuando a dignidade da pessoa humana, ao longo de sua vida, deixando sempre claro que ela é sagrada na sua imagem. Torna-se mais do que necessário um sentimento de compaixão pela criatura humana, toda misteriosa, pela presença daquilo que é divino em sua vida, em resposta ao simples fato de ser criatura de Deus, sem precisar levar em conta suas aptidões, talentos, valores e méritos. Ela é simplesmente imagem divina, sendo presença viva de Deus que se revela na história, evidenciando sua encarnação no mundo dos seres humanos e da vida como um todo, no respeito e na dignidade. 


O mundo da ciência e da tecnologia, diante do mistério da criatura humana, jamais deveria ver e enxergá-la como sua inimiga e não usar de suas práticas e execuções técnicas, no sentido de prejudicá-la em qualquer hipótese. O Universo e sua relação com o ser humano, em conjunto com as demais espécies de seres vivos, estão na mesma direção, numa sociedade que se afirma cristã, mas que, léguas e léguas, se distancia da proposta compassiva de Jesus de Nazaré.

De tudo que existe, Deus deveria ser o centro, no entanto parece patente, muitas vezes, se distanciar da meta, quanto ao destino da humanidade. Mesmo com a compreensão de que se deve ter do nosso mundo tão contraditório, olhando a ciência e mesmo a cultura, no sentido estritamente salutar, que não se distancia do seu foco último, no sonho de que se deve perseguir, num obstinado esforço harmonioso em favor de todos os povos da terra.

Uma sabedoria e um humanismo se contagiam, na mesma compaixão de Jesus de Nazaré, manifestação reveladora de Deus com seu rosto terno e afável, não cabendo margem de se pensar e muito menos de se contar com um cristianismo a contrariar a realidade infra-humana, na condição de vida dos empobrecidos e leprosos de toda sorte. 

Belo e maravilhoso com Cristo, que é nossa paz, a nos convidar à fraternidade, com a conversão do coração. No diálogo por um compromisso de amor, na humilhação reparadora de nossas faltas; com certeza, Deus quer escutar as preces do vosso povo nesta Quaresma de 2021. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Santa Bakhita, herança espiritual

Padre Geovane Saraiva*

Na dinâmica rígida e inflexível da vida, Deus julga cada pessoa humana a partir do seu interior. Por essa razão, pelos seus propósitos salvíficos, Ele não faz discriminação de pessoas, no entanto, os ideais consequentes do seu Evangelho ainda persistem e resistem a duras penas, num elevado preço e custo de renúncia, sacrifício e generosidade, ideais esses que precisam, sempre mais, ser transformados em realidade na história humana.

Pensei no ideal de uma grande santa de origem africana, Josefina Bakhita, ao viver uma vida mergulhada em Deus, num heroísmo inigualável como nenhuma outra pessoa. Nascida no Sudão, em 1869, Josefina foi sequestrada ainda jovem e vendida como escrava. Treze anos depois, foi libertada e migrou para a Itália, onde se converteu ao catolicismo e se tornou freira, religiosa. Viveu uma vida exemplar e foi canonizada santa no ano 2000. Eis um belo exemplo de como a nossa diversidade cultural e racial é possível: viver com Cristo a morrer por qualquer vantagem!

Mulher exemplar e referencial, de escrava a santa, Josefina Bakhita revelou generosidade e coragem de uma alma irrepreensível, pela sua trajetória, deslumbrante e fascinante, do ponto vista da fé cristã. Sem o misterioso dom da graça de Deus, teria sido fácil desistir, buscar vingança ou permitir que o ódio contagiasse toda a sua vida, mas ela se recusou a permitir que as feridas do passado destruíssem seu futuro. Josefina apoiou-se, simplesmente, como mulher, como ser humano, admirável e incomparável, como santa, um exemplo na diversidade e vastidão, na busca da perfeição.

Aqui no Bairro Parquelândia, na Paróquia de Santo Afonso, Fortaleza, lembro-me muito da amiga Iraneide Freire, com sua incansável devoção, ao falar do ardor e da docilidade de Santa Bakhita, despertando-me interesse e curiosidade. João Ubaldo Ribeiro, um grande brasileiro, cultor das nossas letras, romancista e ensaísta da melhor estirpe, membro da Academia Brasileira de Letras, não media palavras, no sentido de elevar e colocar bem alto o nome de Santa Bakhita, sendo ela um despertar espiritual, desmedida e descomunal, na busca de sua fé sólida e segura.

Que Santa Bakhita ajude as pessoas de boa vontade a buscarem um cristianismo mais verdadeiro e solidário, que no passado foi contaminado por atitudes ou ideias raciais, sobretudo no contexto das missões do “novo mundo”, ao se deparar com as culturas, na dificuldade de se perceber um Evangelho encarnado e inculturado. Os missionários deixavam-se levar pelo que diziam os colonizadores, faltando-lhes sensibilidade e sabedoria, mesmo no contexto deletério da escravidão, a qual deveria ter sido considerada nefasta e intolerante quanto preconceituosa, no sentido de anunciar a boa-nova da salvação na sua plenitude, incomparável a qualquer outro conteúdo.

No contexto bíblico, Santa Bakhita nos desafia, embora o Evangelho não fale expressamente da realidade racial, e propõe a conversão do coração, de um modo claro e contundente, no que diz respeito ao racismo, quando se afirma a igualdade como indispensável e essencial aos seguidores de Jesus de Nazaré, assegurando-nos não haver distinção entre judeus e gentios, gregos e bárbaros, homens e mulheres (cf. Cl 3, 9-11). Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Desafiados, mas não derrotados

Padre Geovane Saraiva*

Bendigamos ao bom Deus pelo Patrono dos Direitos Humanos e Injustiçados, Dom Helder Câmara, nascido há 112 anos (07/02/1909) em Fortaleza-CE. Dom Helder nos ensina a verdadeira espiritualidade cristã, que tem seu fundamento e suas raízes na celebração do mistério da vida, que envolve o que é comum a todos: o próprio Deus. Estão aí nossos olhos, pela fé que professamos, sem esquecer o fardo e o lamento do dia a dia, percebendo, de verdade, o Salvador, prometido a todos os povos. Em Jesus – frágil criança de Belém – temos o dom da salvação mandado por Deus (cf. Lc 2, 30s), com grande confiança no nome santo e no louvor a Deus, com penetração por todos os confins do universo. Que possamos nos apresentar diante dele de mãos estendidas!

Nossa missão, a partir do Evangelho (cf. Mc 1, 21-28), com a beleza de sua alegoria, é a mesma de Jesus indo ao encontro das pessoas, a ponto de as encantar e causar muita satisfação. Ele, de modo concreto, manifesta sua desaprovação pela lógica perversa e discriminatória do mundo, de outrora e de hoje, querendo deixar claro, longe de qualquer dúvida, que a exegese nos parece boa, que todas as pessoas devem ser respeitadas, que são chamadas a uma vida com liberdade, como filhos de Deus, num não às forças intolerantes e repressoras demoníacas do mal, amplamente divulgadas entre nós. Tentam a todo custo sustentar a insciência e o obscurantismo, como se fossem o que existe de mais absoluto, como uma verdade de fé, tão evidente no negacionismo extremado e radical, com seu ilusionismo nefasto e deletério, contrariando a terna vontade de Deus.

Por isso mesmo, que seja levado sempre em conta e sem nunca excluir a beleza da diversidade do mundo, no qual todos estamos inseridos, num louvor, numa ação de graças e numa fervorosa súplica de perdão, especialmente por aquele dia 29 de janeiro, quando se comemora o “Dia da Visibilidade Trans”. O contexto do Brasil no mundo é tão incômodo quanto perturbador e negativo, além de pouco animador, nas suas turvas águas, sendo visto no mundo como campeão em matar, segregar e marginalizar criaturas humanas com direitos e dignidade iguais.

Dom Helder nos desafia com esse dia, que é uma ocasião importante para uma reflexão, no sentido de não cruzarmos os braços diante da vida humana, na luta por respeito, mais dignidade, cidadania e, sobretudo, acesso às oportunidades para com as pessoas transexuais e travestis no nosso querido Brasil. Convenhamos: é uma data que quer expressar e falar de dom e graça, de modo compassivo e solidário, mas com o coração de Deus ligado ao coração humano, pelo Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado mundo!

Desafiados, sim, mas não derrotados, é o pensamento do Artífice dos Direitos Humanos: “Quando houver contraste entre tua alegria e um céu cinzento, ou entre tua tristeza e um céu em festa, bendiz o desencontro, no aviso divino de que o mundo não começa nem acaba em ti”. Assim seja!

*Pároco de Santo Afonso, blogueiro, escritor e integrante da Academia Metropolitana de Letras de Fortaleza (AMLEF).