sexta-feira, 24 de maio de 2019

A imaculada Conceição e a política maculada

 domtotal.com
Os estranho caso dos líderes religiosos, "devotos da Virgem
 Maria", que mal rezam um rosário.
Resultado de imagem para imaculada conceição
Vice-chanceler italiano, Matteo Salvini, durante comício na Piazza D'Uomo, em Milão.
Vice-chanceler italiano, Matteo Salvini, durante
 comício na Piazza D'Uomo, em Milão. (AFP)

Por Mirticeli Dias de Medeiros*
O dogma da Imaculada Conceição está na lista dos 4 dogmas marianos que todo católico batizado é chamado a aceitar como verdade de fé. E aqui falo como católica, devota de Maria. Este artigo não bastaria para contar as inúmeras situações nas quais senti milagrosamente a sua intervenção.

Agora, permitam-me falar como jornalista e historiadora (que não deixa de ser católica por isso). Sendo assim, preciso analisar não somente as manifestações espirituais em torno dessa devoção - presente na vida da Igreja há séculos, muito antes de Pio IX bater o martelo com a Ineffabilis Deus, de 1854.

Iniciamos a semana com o vice-chanceler italiano, Matteo Salvini, recitando uma espécie de ladainha ao invocar os santos protetores da Europa no palco de um comício, realizado em Milão. E ela, a Virgem Puríssima, citada como medianeira da vitória dos partidos de extrema-direita nas eleições europeias que se realizam entre 23 e 26 de maio deste ano.

Detalhe: não foi somente a profissão de fé de um líder que se diz católico, mas a atribuição da vitória à mãe da Igreja que, certamente, não toma nenhum partido. Depois disso, muitos italianos perguntaram: “Mas Salvini ao menos reza aquele rosário que ele ergue com tanto orgulho durante essas manifestações?”. Bom, quanto a isso, tirem as suas conclusões através da afirmação do próprio ministro durante um programa transmitido pela emissora italiana La7, veiculado esta semana:

“Sou o último dos bons cristãos [...] Falo palavrão, vou à missa três vezes ao ano, mas defendo a nossa história”, disse.

É a instrumentalização da fé, capaz de sustentar imperialismos, guerras e, na idade contemporânea, nacionalismos. Isso não é novo na história da Igreja. Tudo começa no século IV, quando Constantino se mune de uma cruz para alcançar seus próprios interesses. E os cristãos, ora inocentes, ora coniventes, se conformaram com tais práticas assumindo um estranho conformismo que vai contra a natureza anti-idolátrica da religião de Cristo: “É, mas foi a providência de Deus”. Se no Pai-nosso se instituiu o “Santificado seja o Vosso Nome”, foi justamente para que esse santo nome jamais fosse violado, independente da circunstância.

Bom, voltemos ao nosso dogma. Obviamente, não colocarei em xeque a natureza espiritual desta verdade de fé, como citei na introdução deste texto. Porém, isso não me impede de questionar: por que o dogma da Imaculada Conceição só viria a ser proclamado durante o conturbado pontificado de Pio IX (o último papa-rei, como é caracterizado pela historiografia)?

Devemos ter em mente que a proclamação do dogma acontece nos anos de triunfo do liberalismo e do florescer do positivismo de Comte (1798-1857), sem contar os ventos do marxismo que já começavam a soprar – o Manifesto do Partido Comunista seria publicado 4 anos depois, em 1848. O homem, a natureza e a razão passam a tomar o lugar de Deus, ideias que também ameaçavam a soberania da Igreja enquanto instituição. Inclusive, acreditava-se firmemente que Pio IX seria o último papa, tendo em vista que o Estado Pontifício já mostrava sinais de enfraquecimento. Portanto, proclamar um dogma que reunisse em si toda a base dogmática cristã – o homem elevado à ordem sobrenatural, a encarnação de Cristo e a redenção proporcionada por Ele  – certamente não seria em vão.

Transformar o ato consagração à Imaculada Conceição em ato político: algo que nem a Virgem Maria previu. No caso do Brasil, fez-se uma referência específica ao Imaculado Coração de Maria, título que, nas aparições de Fátima, recebeu enorme destaque. A Virgem Maria teria pedido que os bispos de todo o mundo consagrassem a Rússia a seu Imaculado Coração, sustentando, assim, a natureza religiosa do ato: um claro combate à ideologia ateia.

No caso da “consagração de Bolsonaro” foi um verdadeiro ato de fé ou um gesto que serve para sustentar a polarização e esse maniqueísmo religioso que se manifestam no Brasil? Foi um ato de devoção ou mais um “agrado” para manter essa subserviência do eleitorado católico? Foi uma demonstração de amor filial à Virgem Maria ou a convocação de uma cruzada política – às vésperas das manifestações de domingo, coincidentemente -  que convoca a Virgem Maria para o fronte de uma batalha civil, não religiosa?

*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.

Nenhum comentário:

Postar um comentário