quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Roma locuta? Uma aproximação à eclesiologia da cúpula do Vaticano sobre o abuso sexual

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A resposta atual da Igreja ao abuso sexual ainda está em seus estágios iniciais, e isso não é apenas culpa do Vaticano ou da hierarquia eclesiástica.
Francisco iniciou a conversão eclesiológica para uma maior colegialidade e sinodalidade.
Francisco iniciou a conversão eclesiológica para uma maior 
colegialidade e sinodalidade. (Reprodução/ La Croix)
Por Massimo Faggioli

A cena poderia ser facilmente aplicada à Igreja Católica e sua hierarquia hoje.

Assim como as revoluções políticas e convulsões culturais do século XVIII impactaram os direitos divinos dos monarcas, a crise clerical dos abusos sexuais está derrubando os direitos divinos da hierarquia católica. A crise é muito maior do que um enorme problema de corrupção e encobrimento.

O escândalo do abuso sexual na Igreja Católica não é um momento isolado na história. Pelo contrário, deve ser visto dentro de uma série de desafios que a modernidade colocou à religião institucional. No horizonte, enormes consequências a longo prazo para o papel e a vida da Igreja.

Elas incluem o seguinte: os efeitos da transparência e da responsabilidade na religião organizada; a capacidade da Igreja de lidar com a psicologia da indignação na era das mídias sociais; e a enorme renegociação das relações entre a Igreja e o Estado, como o arcebispo australiano Mark Coleridge apontou durante uma conferência de imprensa no encontro do Vaticano sobre o abuso sexual de clérigos.

A reunião de 21 a 24 de fevereiro - oficialmente chamada de "reunião sobre a proteção de menores na Igreja" - será um momento importante da história do catolicismo institucional.

E, enquanto a parte mais decisiva depende do acompanhamento dos quatro dias de reunião, a reunião em si já ofereceu uma imagem da Igreja que nos ajuda a entender a complexidade da crise.

A história da resposta da Igreja Católica à crise dos abusos sexuais como uma crise global ainda tem que ser escrita, no entanto, podemos identificar três formas diferentes com as quais o Vaticano lidou até agora.

Durante o pontificado de João Paulo II, a resposta foi caracterizada pela atitude defensiva e a negação - não apenas pelo próprio papa polonês, mas também por seu séquito e altos funcionários do Vaticano que ele mesmo nomeou.

Havia também a tendência de defender os agressores e aqueles que encobriam o abuso. O exemplo mais escandaloso foi a nomeação do cardeal Bernard Law por João Paulo II como arcipreste da Basílica Romana de Santa Maria Maggiore em 2004.

Durante a era de Bento XVI, o Vaticano começou a se concentrar em casos como os protagonizados pelos Legionários de Cristo e pela Igreja Católica na Irlanda.

Adotou novos instrumentos legais para combater o fenômeno do abuso sexual, mas o fez seguindo o modelo clássico de gestão eclesiástica de cima para baixo, baseado em uma eclesiologia centralista.

O pontificado do Papa Francisco deu início a um momento diferente, não apenas pelos novos desdobramentos da crise global entre 2017 e 2018 (especialmente na Austrália, Chile e Estados Unidos), mas também por uma abordagem eclesiológica diferente.

Primeiro, Francisco trouxe a crise para o Vaticano não apenas como um lugar para as relações bilaterais entre Roma e a Igreja em um país ou uma ordem religiosa.

A convergência acontece entre a percepção de Francisco sobre o catolicismo global e sua eclesiologia da sinodalidade: todos os países representados no encontro pela conferência episcopal, todas as áreas do mundo representadas pelos oradores; as contribuições essenciais feitas pelas mulheres para a conferência; a necessidade de criar um espaço e ter tempo para uma conversa eclesial que precede qualquer tomada de decisão.

Em segundo lugar, a eclesiologia da sinodalidade é relevante para o manejo do Vaticano da crise dos abusos como uma Igreja global.

A crise revelou a insustentabilidade de um modelo eclesiológico que, no segundo período pós-Vaticano II (de João Paulo II a Bento XVI), frustrou o papel teológico dos níveis local e nacional.

Neste sentido, a ação de Francisco sobre a crise dos abusos sexuais foi uma combinação necessária de impulsos do centro (desde a criação da Comissão Pontifícia para o Abuso de Menores em 2014 até a reunião de fevereiro de 2019) e a criação de novos espaços. para colegialidade e a sinodalidade.

Esta é uma mistura que reflete não apenas a eclesiologia do papa, mas também a necessidade de reciprocidade entre o nível universal-central e o nível local no catolicismo romano.

Francisco iniciou a conversão eclesiológica para uma maior colegialidade e sinodalidade, conforme necessário para combater o clericalismo, que o papa identifica como a causa e raiz do abuso sexual do clero.

Em terceiro lugar, uma igreja sinodal requer discernimento. No recente encontro sobre o abuso, o Vaticano tentou ser transparente no uso da mídia, fazendo com que grande parte da reunião fosse acessível a qualquer um que desejasse assistir a sessões públicas on-line, em particular as três apresentações diárias e a coletiva de imprensa.

Mas tentou equilibrar essa transparência com momentos privados, fora da câmera, necessários para criar um clima de discernimento entre os participantes.

Por esse motivo, não forneceu cobertura do período de perguntas e respostas após cada apresentação. E permitiu que apenas os participantes do encontro assistissem ao momento de oração penitencial do sábado e à missa de encerramento do domingo, em vez de abri-lo ao público.

Essas sessões a portas fechadas foram claramente necessárias também por razões de segurança, em uma reunião realizada em um Vaticano sitiada, simbólica e materialmente, por organizações representando vítimas de abuso e outros grupos de defesa católicos.

Mas as sessões fechadas também foram destinadas a comover os participantes e sensibilizá-los sobre o encontro, também como um retiro espiritual, e não apenas um evento da mídia.

As liturgias do sábado e do domingo foram preparadas e compreendidas de maneira muito diferente das do passado - particularmente as do pontificado de João Paulo II. Por exemplo, a liturgia penitencial teve lugar na Basílica de São Pedro onde aconteceu o Grande Jubileu (12 de março de 2000).

Quarto, uma Igreja sinodal está aberta a diferentes tipos de contribuições provenientes (ad extra) do mundo exterior.

Isso foi muito visível nas fontes e organizações que o Papa Francisco citou em seu discurso final: a Organização Mundial de Saúde, UNICEF, Interpol, Europol, o Centro Asiático de Direitos Humanos, o Instituto Australiano de Saúde e Bem-Estar e assim por diante.

O encontro deu um lugar especial à mídia, não apenas como um simples mensageiro da notícia, mas também como um ator-chave na história da crise dos abusos sexuais católicos.

O discurso da jornalista vaticana Valentina Alazraki do México foi sobre o reconhecimento do poder da mídia na Igreja - e também uma captatio benevolentiae à imprensa dos estrategistas de mídia do Vaticano.

Por outro lado, a cúpula do Vaticano não incluiu outros atores-chave que poderiam ajudar a entender melhor a complexidade da crise dos abusos, como representantes da polícia, advogados, gerentes de seguros e, principalmente, procuradores-gerais e promotores que trabalham para a jurisdição civil.

A reunião do Vaticano ofereceu um quadro simplificado (apresentando as hierarquias eclesiásticas, as vítimas e a mídia) de uma situação muito mais complexa.

Quinto, uma Igreja sinodal significa uma Igreja aberta à mudança que não é apenas estrutural, mas também teológica. A cúpula deixou claro, mais do que nunca, que a Igreja precisa de órgãos governamentais eclesiásticos que incluam mulheres na mesa onde as decisões são tomadas.

Apesar de todo o constrangimento visível do modo coloquial de Francisco falar sobre as mulheres - especialmente duro para os ouvidos da maioria dos católicos no mundo ocidental - é inegável que alguns passos positivos foram dados na direção certa.

Mas o espectro de problemas a longo prazo é muito mais amplo. O abuso sexual não é apenas um problema para as igrejas ocidentais que enfrentam uma crise de civilização, centrada em questões sexuais e biopolíticas.

Pelo contrário, é um problema global e potencialmente mais sério para as igrejas em lugares como a África, a Ásia e também a Itália, onde o abuso sexual tem sido irresponsavelmente subestimado até agora.

Não é simplesmente uma questão de lidar com um fenômeno criminoso. É também uma questão teológica: da teologia dos sacramentos (especialmente da ordenação ao sacerdócio) aos modelos eclesiológicos; do papel das mulheres na Igreja ao magistério do século passado sobre moralidade sexual.

A questão mais complicada diz respeito às reformas estruturais necessárias para abordar a mística em torno do sacerdócio e do episcopado, que muitas vezes ainda são vistas como posições de honra sem as responsabilidades que derivam das ordens sagradas.

O espectro das questões a serem abordadas é amplo. Nesse sentido, as demandas por "tolerância zero", que devem ser ouvidas, especialmente porque vêm de grupos de vítimas - podem se tornar um slogan que não ajuda na compreensão da vastidão das questões em aberto.

Para fazer uma comparação, o Concílio de Trento, no século XVI, não respondeu à Reforma Protestante apenas com um programa de limpeza da corrupção.

Também repensou algumas categorias teológicas. A resposta atual da Igreja ao abuso sexual ainda está em seus estágios iniciais, e isso não é culpa apenas do Vaticano ou da hierarquia eclesiástica.

O paradoxo é que o escândalo atingiu mais fortemente os países mais distantes de Roma - lugares como a Austrália e os Estados Unidos que são geográfica e culturalmente distantes, e onde a teologia é vital, mas, nas últimas décadas, teve menos impacto na elaboração de políticas doutrinárias e no magistério da Igreja.

 Sob o papa Francisco, o papado parece ter dado um passo para frente na luta contra o abuso sexual clerical. Mas na Igreja global, e nesta comunhão global feita de periferias, o catolicismo ainda tem muitos passos para dar.


La Croix International - Tradução: Ramón Lara

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