sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Em Roma, cientistas e pensadores refletem se existe um cérebro 'maligno'?

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Psiquiatras, neurologistas e padres debatem a partir de uma visão científica sobre a existência do mal.
Muitas vezes, a forma como a religião tradicional define os distúrbios psiquiátricos é a partir de termos morais.
Muitas vezes, a forma como a religião tradicional define os distúrbios psiquiátricos é a partir de termos morais. (Reprodução/ Pixabay)
Por  Elise Harris

ROMA - Talvez uma das questões mais ponderadas de todos os tempos diz respeito à existência do mal - o que é, por que existe e por que um Deus amoroso o permitiria? No entanto, apesar de séculos e séculos de estudos, nenhuma resposta clara foi encontrada por filósofos e humanistas que investigaram o tema.

Nesta semana, psiquiatras, neurologistas e padres retomaram a discussão a partir de uma visão científica, perguntando se existem coisas como "bons" e "maus" cérebros - e como, se é que isso acontece, isso se cruza com a fé.

De acordo com o professor Stephen Stahl, que falou durante a aula de 22 de novembro sobre psicofarmacologia, o estudo do impacto das drogas na mente e no comportamento, realizado na Universidade Pontifícia Regia Apostolorum, em Roma, não há uma resposta clara para a pergunta.

Em uma entrevista com Crux, Stahl, professor adjunto de psiquiatria da Universidade da Califórnia em San Diego e membro honorário do departamento de psiquiatria da Universidade de Cambridge, disse que a verdadeira questão, do ponto de vista científico, é "qual é a diferença entre estar doente e ser mau?

"Há pessoas que fazem más ações e não são realmente responsáveis por isso, porque estão muito doentes", como pessoas com esquizofrenia ou alucinações, ele disse, mas advertiu que isso não está necessariamente mal, mas se trata de um estado "psicótico".

O mal, Stahl disse, é algo que ninguém pode realmente diagnosticar, mas é amplamente entendido como incluindo formas de "comportamento maligno", como o terrorismo. Esses comportamentos se correspondem intimamente com indivíduos que sofrem de uma condição psiquiátrica chamada "transtorno de personalidade antissocial", disse o professor, ou seja, as pessoas que dão ao termo "psicopata" sua definição médica.

Stahl, que é um dos principais pesquisadores em psiquiatria e psicofarmacologia, e que em breve publicará um livro intitulado "Mal, terrorismo e psiquiatria", disse que psicopatas reais são pessoas que "não têm consciência, não têm empatia", mas podem manipular os outros e muitas vezes podem até ser carismáticos”.

Observando como cerca de quatro por cento dos homens e dois por cento das mulheres sofrem com a condição, ele disse que o número é maior nas prisões, porque é mais fácil para as pessoas que operam sem consciência fazer as coisas que as levam até atos considerados maus.

No entanto, Stahl disse que existem "psicopatas idiotas", esses que são apreendidos, enquanto os "psicopatas inteligentes" são políticos ou pessoas que acabam como CEOs de empresas.

"Há uma sobre representação de psicopatas que são altamente bem-sucedidos porque são implacáveis, e não os incomoda passar por cima das pessoas para chegar ao topo", disse ele, acrescentando que muitos terroristas também estão no grupo.

Os verdadeiros psicopatas, disse o professor, são os que ficam para trás e dão as ordens, permitindo que outros levem a culpa se as coisas derem errado.

Stahl disse que o comportamento de padres e fundadores de ordens religiosas ou movimentos acusados de vários escândalos e atividades de culto nos últimos anos também de certa forma se alinha com a descrição de um psicopata.

Ações realizadas por pessoas que não têm consciência estão próximas de uma definição do mal, disse Stahl, acrescentando que, em sua opinião, o mal "é mais uma ideia religiosa, mas existe alguma sobreposição" com a ciência.

Olhando para o conceito católico dos “sete pecados mortais”, Stahl disse que muitos deles refletem verdadeiros distúrbios psiquiátricos, como a preguiça, que ele disse “é provavelmente um transtorno depressivo maior. [Estas são] pessoas que realmente não têm motivação, falta de vontade de cuidar de si mesmas”.

"Muitas vezes, a forma como a religião tradicional define os distúrbios psiquiátricos é a partir de termos morais", disse ele, descrevendo a discussão sobre o mal e a psiquiatria como um tapete no qual "há um fio cerebral junto a outro fio moral tecendo o tapete e você pode ver um os fios de ambas as perspectivas, mas depende do prisma que você está olhando, destaca mais um do que outro”.

O padre Alberto Carrara, coordenador do Grupo de Pesquisa Italiano em Neurobioética e professor de antropologia filosófica e neurobioética na Pontifícia Universidade Regina Apostolorum, em Roma, disse que, do ponto de vista de um crente, o pecado ainda tem um papel a desempenhar.

De um ponto de vista cristão, o mal “é a limitação e a fragilidade que se manifesta, ou pode se manifestar, em patologias psiquiátricas, que vêm dessas feridas”.

Em conversa com Crux, Carrara, que também é membro da Cátedra de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, disse que a natureza humana "encontra-se ferida pelo pecado, pelo mal" e, como consequência desta natureza ferida e caída, distúrbios mentais e psiquiátricos podem se desenvolver.

Usando o exemplo de uma guitarra, Carrara disse que nem todos os acordes de uma pessoa estão sempre afinados. Observando que 25% da população sofre de algum tipo de patologia mental ou doença, com cerca de dois por cento se transformando em uma patologia psiquiátrica séria, como aponta o professor, a fé tenta "iluminar" esse fenômeno a partir da perspectiva de Cristo, que veio salvar a humanidade de pecado", mas é preciso e congratula-se com informações científicas, neste caso, os dados da psiquiatria".

Segundo Stahl, deveria haver uma parceria natural entre a ciência e as comunidades de fé, mas “muitas vezes os cientistas basicamente não estão pensando nesses termos. Eles estão tão interessados na tapeçaria que tecem, quase racional e científica, sem realmente ter uma perspectiva moral”.

Por outro lado, “às vezes as pessoas com uma forte perspectiva moral não conhecem muito bem a ciência”, ele disse, explicando que, por causa disso, “é um casamento muito bom quando as duas perspectivas trabalham juntas, porque você pode ser secular ao ponto de tentar esterilizar o que você está fazendo, mas o sofrimento humano é algo que tem dimensões morais, não é apenas biológico”.

Stahl disse que essa convergência é especialmente útil em questões difíceis como a livre escolha quando se trata de tratamento, com os psiquiatras se perguntando quando é aceitável “forçar” o tratamento em alguém, e até que ponto uma pessoa pode recusar o tratamento, no caso de pessoas que são potencialmente um perigo para si ou para os outros.

Em seus comentários a Crux, Carrara disse que os prismas do cérebro versus a moral “devem ser complementares”, porque “ambos iluminam o ser humano”, e ambos buscam aliviar o sofrimento, “o que a Igreja nos diz ao respeito é importante".

Carrara, que atualmente está realizando pesquisas sobre a consciência, abordou o tema da linha entre a consciência de uma pessoa sobre suas ações e a doença mental, onde começa e termina uma e outra.

A resposta, disse ele, “não é simples, porque a consciência contém dimensões multifacetadas. Falamos de consciência de uma maneira polissêmica, que tem diferentes níveis, estratificações e complexidades”, e há também a questão de exatamente o quanto uma patologia “pode diminuir essa área de autoconsciência”.

Notando que existem síndromes neurológicas e psiquiátricas que podem potencialmente alterar o estado da consciência de uma pessoa e a percepção que tem de si mesma e de seu ambiente, ele disse que o que está em jogo nesses casos é a "integridade da pessoa".

Carrara disse que os profissionais devem ler dados psiquiátricos, genéticos e neurocientíficos com uma pessoa específica em mente, já que nem todos são iguais e as patologias podem se manifestar de maneira diferente.

"É preciso ser tomado caso a caso, não podemos fazer um catálogo", disse ele.
Em termos de parâmetros éticos, Carrara disse que a dignidade humana é a primeira.
Entre outras coisas, isso significa fazer uma avaliação dos riscos versus os benefícios de um dado tratamento, disse ele, já que há tantos distúrbios quanto drogas “que alteram e modificam a identidade pessoal”.

Outra questão ética importante, disse ele, envolve a justiça social e a “justiça dos tratamentos”, já que nem todas as pessoas têm acesso à terapia ou às drogas certas.

 "Nem todo caso é matemático, mas todo caso deve ser considerado em sua globalidade", apontou Carrara, acrescentando que, por causa disso, "a medicina é uma arte".


Crux - Tradução: Ramón Lara.

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