quarta-feira, 31 de outubro de 2018

PAÍS É IGNORANTE A RESPEITO DA DITADURA

Seguimos na negação da história recente, o que tende a piorar e legitimar alguns acontecimentos da ditadura.
Por Gabriel Brito*
bolsonaro23
Jair Bol­so­naro será o pró­ximo pre­si­dente da Re­pú­blica, eleito no do­mingo, 28, com 55% dos votos vá­lidos. Se de lado um o des­gaste que so­freu na úl­tima se­mana de cam­panha pa­rece ter es­friado a eu­foria com sua vi­tória, por outro aqueles que o re­pu­di­aram se­guem atô­nitos. Ainda é di­fícil fazer qual­quer ava­li­ação sobre uma pos­sível mu­dança de pa­tamar da his­tória bra­si­leira com uma chapa de en­tu­si­astas da di­ta­dura mi­litar. Dessa forma, o Cor­reio pu­blica en­tre­vista com Ivo Herzog, en­ge­nheiro e filho de Wla­dimir, uma das ví­timas mais lem­bradas do pe­ríodo mi­litar, a fim de tentar uma pri­meira re­flexão.

“O país não es­co­lheu nada nesse sen­tido (de voltar a algo pa­re­cido com a di­ta­dura). O país é to­tal­mente ig­no­rante a res­peito da di­ta­dura. Ne­nhum go­verno, desde FHC, passou a limpo este pas­sado. Não es­cre­vemos as pá­ginas desta his­tória. Es­cre­vemos al­guns pre­fá­cios apenas. Pra usar pa­lavra da moda, nunca houve uma re­flexão mais pro­funda, nem do go­verno e nem dos bra­si­leiros”, ana­lisou.

igor herzog
Assim, a eleição de Bol­so­naro pa­rece co­roar um mo­mento em que as mais im­por­tantes ins­ti­tui­ções e re­pre­sen­ta­ções po­lí­ticas do pós-di­ta­dura per­deram sua cre­di­bi­li­dade, a úl­tima delas o ju­di­ciário e mais es­pe­ci­fi­ca­mente o Tri­bunal Su­pe­rior Elei­toral (TSE).


“Os grandes par­tidos, que foram os prin­ci­pais pro­ta­go­nistas da his­tória re­cente – PT e PSDB – tem que ajudar a re­cons­truir nossa es­tru­tura de­mo­crá­tica. Des­carto o PMDB aqui pois sempre se pre­o­cupou em colar em quem es­ti­vesse no poder”, afirmou.

De toda forma, o quadro é obs­curo e há poucas ra­zões para se apegar ao oti­mismo, numa eleição em que, mesmo di­ante de ou­tras op­ções con­ser­va­doras, o país es­co­lheu a mais tru­cu­lenta dessas. “Virou uma per­cepção po­si­tiva na so­ci­e­dade se dizer de di­reita”, la­mentou.

A en­tre­vista com­pleta com Ivo Herzog pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você está di­ge­rindo a vi­tória de Jair Bol­so­naro? O que ela re­pre­senta numa pers­pec­tiva his­tó­rica?

Ivo Herzog: A ex­pec­ta­tiva é a pior pos­sível, ob­vi­a­mente. Luto com minha fa­mília há mais de 40 anos por jus­tiça e a cons­trução de uma agenda so­ci­al­de­mo­crá­tica, e nesse sen­tido Bol­so­naro re­pre­senta 50 anos de re­tro­cesso.

Não dá pra saber o que vai dar, mas temos de ob­servar o que ele fala. Desde o co­meço da cam­panha ele usou uma es­tra­tégia de se apre­sentar como uma pessoa mais mo­de­rada. Mas essa “mo­de­ração” sempre foi di­ante da câ­mera e da im­prensa. Quando falou para seus se­gui­dores e redes so­ciais, não teve nada de mo­de­rado. É fas­cista, pra usar uma pa­lavra bem sim­ples. Faz dis­curso de ex­clusão, de per­se­guição ide­o­ló­gica, a exemplo desse ab­surdo de es­ti­mular alunos a filmar pro­fes­sores em sala de aula, o que con­fi­gura quase um Es­tado de sítio.

Mas ainda é tudo novo, não sa­bemos quem serão os mi­nis­tros e suas pautas prá­ticas. Sa­bemos de seu pas­sado e um dis­curso, em es­pe­cial da pri­meira fase da cam­panha, muito ruins. A ex­pec­ta­tiva é a pior pos­sível.

Cor­reio da Ci­da­dania: É pos­sível falar deste re­sul­tado sem atrelá-lo à re­lação que o país aceitou es­ta­be­lecer com o seu pas­sado re­cente de di­ta­dura mi­litar?

Ivo Herzog: O país não es­co­lheu nada nesse sen­tido. O país é to­tal­mente ig­no­rante a res­peito da di­ta­dura. Ne­nhum go­verno, desde FHC, passou a limpo este pas­sado. Não es­cre­vemos as pá­ginas desta his­tória. Es­cre­vemos al­guns pre­fá­cios apenas.

Pra usar pa­lavra da moda, nunca houve uma re­flexão mais pro­funda, nem do go­verno e nem dos bra­si­leiros. Temos apenas al­gumas ma­ni­fes­ta­ções iso­ladas das forças ar­madas, sempre no pior sen­tido. Assim como foi pés­sima a ma­ni­fes­tação do mi­nistro do STF, Dias Tof­foli, ao dizer que não houve di­ta­dura, mas um pro­cesso de­mo­crá­tico.

Se­guimos na ne­gação da his­tória re­cente, o que tende a pi­orar e le­gi­timar al­gumas coisas que acon­te­ceram na época, já que te­remos um re­pre­sen­tante desta ala da so­ci­e­dade na pre­si­dência.

Mas não é que a so­ci­e­dade deu um aceite à di­ta­dura. Deu um aceite ao des­co­nhe­cido. No en­tanto, não tem a vaga ideia do que foi a di­ta­dura mi­litar.

Cor­reio da Ci­da­dania: Já que você men­ciona a de­cla­ração re­cente do mi­nistro Dias Tof­foli, como en­xerga o papel das ins­ti­tui­ções de­mo­crá­ticas neste úl­timo pe­ríodo? O que co­menta do papel do TSE nas elei­ções?

Ivo Herzog: Vou tentar con­si­derar um marco tem­poral mais amplo. O Es­tado é for­mado por três po­deres e o pri­meiro, a meu ver, a des­res­peitar sua fi­na­li­dade foi o le­gis­la­tivo, com cor­rupção, ações em causa pró­pria, des­monte da Cons­ti­tuição, falta de pre­sença no pró­prio Con­gresso...

A se­guir veio o Exe­cu­tivo, em forte pro­cesso de des­cons­trução, o que se in­ten­si­ficou no breve go­verno Temer, que des­pa­chou no Pa­lácio do Ja­buru, o do vice, e se guiou por in­te­resses ab­so­lu­ta­mente an­tir­re­pu­bli­canos. Por úl­timo, in­fe­liz­mente, aquele que antes se pro­tegia bem e se pre­ser­vava me­lhor, o ju­di­ciário, en­trou na mesma ló­gica.

Sobre o TSE, vol­temos ao ano pas­sado: quando houve o voto de mi­nerva na questão da cas­sação Dilma-Temer, vimos o mi­nistro dizer que foi contra a cas­sação total (o que exi­giria a saída de Temer da pre­si­dência) “porque acho me­lhor para o Brasil”. Ali já vimos um desvio. Não cabe esse tipo de de­cla­ração ao ju­di­ciário. Este pre­cisa in­ter­pretar a lei. Todo mundo acha al­guma coisa em re­lação ao que é me­lhor para o Brasil, co­me­çando pelos di­fe­rentes re­pre­sen­tantes do Le­gis­la­tivo. Se ele se pres­tasse a con­correr a um cargo neste poder teria mais le­gi­ti­mi­dade em afirmar o que con­si­dera me­lhor para o Brasil.

A questão do ju­di­ciário é séria. O ápice talvez seja a de­cla­ração do Dias Tof­foli, ao negar o ca­ráter do golpe de 1964, algo ab­so­lu­ta­mente grave.

Vol­tando ao TSE, me­lhor aguardar. Acho que houve muitas ame­aças do can­di­dato eleito du­rante todo o pro­cesso, mas o tri­bunal só se ma­ni­festou quando a ameaça foi contra sua pre­si­dente. Quando as ame­aças se di­ri­giram a mim, a você, a se­tores vul­ne­rá­veis do povo bra­si­leiro a re­ação foi ver­go­nhosa.

De todo modo, as in­ves­ti­ga­ções se­guem abertas. Ele não é pre­si­dente ainda, pre­cisa ser di­plo­mado. Aliás, a im­prensa se equi­voca em usar essa forma. Não dá pra ter dois pre­si­dentes ao mesmo tempo, ele é um pre­si­dente eleito, não em exer­cício.

Cor­reio da Ci­da­dania: Por que as elites econô­micas e po­lí­ticas não pu­deram apre­sentar uma di­reita menos tru­cu­lenta e be­li­cista em seus modos de fazer po­lí­tica?

Ivo Herzog: Elas apre­sen­taram. Tinha Alckmin, Mei­relles e Amoêdo. A po­pu­lação que não foi no dis­curso deles. E seus par­tidos man­ti­veram grandes es­paços no poder. O can­di­dato ven­cedor vem tra­ba­lhando sua can­di­da­tura desde 2014, quando de­cidiu con­correr, im­por­tante des­tacar isso, pois temos de re­co­nhecer que ele foi ab­so­lu­ta­mente eficaz no uso das mí­dias so­ciais. E, pra fazer um pa­ra­lelo, foi por aí que o Trump pa­vi­mentou sua vi­tória nos EUA. As di­reitas ti­nham até mais can­di­datos que a es­querda.

Uma coisa que se in­verteu é que na minha época de jovem, tenho 52 anos, as pes­soas ba­tiam no peito pra dizer que eram de es­querda. Hoje fazem isso pra se di­zerem de di­reita. Não se in­verteu tal ló­gica com­ple­ta­mente, mas virou uma per­cepção po­si­tiva na so­ci­e­dade se dizer de di­reita.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que fazer para co­meçar a res­ponder a isso? Voltar à carga pela aber­tura total da do­cu­men­tação re­la­tiva ao pe­ríodo mi­litar seria um bom co­meço?

Ivo Herzog: Já se tentou tra­ba­lhar nesse sen­tido e deve con­ti­nuar a ser feito, na cul­tura, nas es­colas, nas artes etc. Mas é uma questão po­lí­tica maior. Os grandes par­tidos, que foram os prin­ci­pais pro­ta­go­nistas da his­tória re­cente – PT e PSDB – têm de ajudar a re­cons­truir nossa es­tru­tura de­mo­crá­tica. Des­carto o PMDB aqui, pois sempre se pre­o­cupou em colar em quem es­ti­vesse no poder.

O PSDB, a partir da as­censão de Doria, pra­ti­ca­mente acabou. Um su­jeito que se elege com um dis­curso de ex­trema-di­reita num par­tido que nasceu sob o ideal da so­ci­al­de­mo­cracia, uma ori­en­tação hu­ma­nista, é triste. So­brou o quê? FHC, Serra, que não se ma­ni­festam mais? Goldman, que era do PCB, se ma­ni­festa de forma mais fiel ao par­tido e quando faz isso é ame­a­çado de ex­pulsão.

O pró­prio PT passa por um mo­mento muito sério. Tem um cara lú­cido e res­pei­tador das ins­ti­tui­ções, como o Haddad, e tem a Gleisi Hoffman, que quando se ma­ni­festa as de­safia. In­clu­sive não ajudou na cam­panha, só atra­pa­lhou, como quando disse que ga­nha­riam a eleição pra tirar Lula da ca­deia, o que o pró­prio Haddad teve de des­mentir, res­pon­dendo que Lula seria jul­gado pelas ins­tân­cias se­guintes – STJ e STF.

Fora isso, existem vá­rios porquês na vi­tória do Bol­so­naro. Um deles a re­jeição ao PT. Ba­si­ca­mente dois terços da po­pu­lação re­pu­diam o par­tido de forma in­tensa, e in­cluo aqui os que vo­taram nulo ou dei­xaram de votar. O es­tigma do par­tido foi cons­truído ao longo dos anos, sem en­trar no mé­rito de ser bom ou ruim, mas com um dis­curso muito ra­dical em vá­rios as­pectos, o que pegou em cheio a po­pu­lação. Eu não con­cordo com a ideia de que o PT é o par­tido mais cor­rupto, pra deixar bem claro, mas não é essa a dis­cussão, e sim o es­tigma que se criou. E nesse sen­tido era muito di­fícil ter uma can­di­da­tura ma­jo­ri­tária en­ca­be­çada pelo PT.

Todas as si­mu­la­ções já in­di­cavam que o par­tido que tinha menos chance de bater Bol­so­naro era o PT. O PT tinha de de­sistir da can­di­da­tura? Não ne­ces­sa­ri­a­mente, mas o fato era esse.

Sobre a aber­tura de ar­quivos, não temos acesso àquilo que está sob poder das forças ar­madas e, se­gundo elas, foi des­truído. Re­al­mente, pouco foi re­cu­pe­rado. Mas tem uma quan­ti­dade mo­nu­mental de ar­quivos pu­bli­cados, como o re­la­tório final da Co­missão da Ver­dade, o site Me­mó­rias da Di­ta­dura, com fil­mo­grafia e li­vros, que já dão uma noção enorme do que foi o pe­ríodo etc.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como acha que fi­cará o Es­tado bra­si­leiro di­ante da cha­mada co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal?

Ivo Herzog: Não está bem na foto, né? E faz tempo. Não se­guiu as re­co­men­da­ções do caso Ara­guaia e outra série de coisas. Agora pi­orou bas­tante. Mas pi­orou em função dos dis­cursos e da tem­pe­ra­tura de tais dis­cursos. Há um de­safio para o ano que vem, quando será apre­sen­tada de­núncia do caso Herzog em função da sen­tença da OEA, a partir da aber­tura de in­ves­ti­ga­ções pelo Mi­nis­tério Pú­blico.

Vamos ver como res­pondem as ins­ti­tui­ções res­pon­sá­veis pelo Es­tado de­mo­crá­tico de di­reito no país. Não con­deno nada nem nin­guém por an­te­ci­pação, po­demos nos sur­pre­ender pelo lado bom também.

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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