quarta-feira, 8 de agosto de 2018

O segredo do candelabro

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O golpe fatal ocorreu na sala de estar, com o candelabro.
O candelabro apenas lhe acendia a vaga memória de morte e traição.
O candelabro apenas lhe acendia a vaga memória de morte e traição. (Reprodução)
Por Pablo Pires Fernandes*

Zilda perdeu a vida estupidamente por causa de um segredo. Levou-o para o túmulo, caixão de pinho e lápide modesta. No velório, Arnaldo observava dor, comoção e revolta nos olhares. A comadre, inconformada, repetia: “Não é justo, não é justo”. Não era, jamais pode ser.

Antônio, num acesso de ódio ébrio, golpeou a mulher. Sua mulher? Sim. Zilda e Antônio, há 23 anos, fizeram um pacto de amor. E a entrega se deu, na cama e na vida, no empenho mútuo de querer o melhor para o filho. Só que Antônio confundiu o pronome. Possessivo, a conjugação e o pacto ficaram sem plural.

O golpe fatal ocorreu na sala de estar, com o candelabro. Atônito, sacudiu o corpo de Zilda, inerte. Catou o toco de vela, colocou-o de pé e, trêmulo, acendeu o pavio. Pediu perdão. A ela, a Deus e temeu a danação. O inferno, um outro, estava mais próximo do que Antônio imaginava.

Peça antiga, o candelabro era de valor, Zilda tinha lhe dito. Coisa de família. Antônio, porém, nunca guardou a história. Confundia o caso do bisavô com o da escrava fugitiva e não sabia bem a relação entre o objeto e o passado que ele guardava, mas que tinha um segredo ali. O candelabro apenas lhe acendia a vaga memória de morte e traição.

Saiu porta afora e, logo na rua, ao cruzar o primeiro olhar, largou o candelabro na calçada. Vagou horas até escutar seu nome: “Antônio!”. Era Xavier, um conhecido. A farda e o camburão o despertaram do transe. Surgiu-lhe imagem de Zilda, inerte, no chão da sala de estar e a história do candelabro.

A mulher, que julgava sua, estava morta, ele sabia. Não sabia, porém, que Zilda era, de fato, sua. Ela se entregou a ele por desejo e, mesmo diante dos acalorados bate-bocas dos últimos anos, guardava por Antônio inegável ternura. Não faltam testemunhas  da dedicação de Zilda a Antônio.

Na porta da casa, Xavier teve que conter os vizinhos. Antônio seguiu, cabisbaixo, o caminho da viatura até a sala de estar. Virou o rosto – como se fosse capaz de evitar a cena, o crime cometido, a culpa. O candelabro sobre a mesa, a vela acesa. Confessou tudo ali mesmo e se calou, ouvindo os impropérios dos vizinhos à porta de casa.

Arnaldo observava e, discretamente, escrevia uma ou outra palavra no bloco de papel amarrotado. Assistiu à chegada das demais viaturas e anotou a tristeza do olhar de Xavier ao fechar a porta do camburão. Não usou a caneta para registrar a cena dos vizinhos se dispersando, sabia que jamais se esqueceria daquela imagem.

No boteco da esquina, a cerveja na mesa, Arnaldo compartilhou verdades com os moradores do bairro. Interrompeu seu discurso sobre a vitória do América para elogiar a voz do Eric Burdon quando a jukebox soltou “It’s all over now baby blue”.

Anos depois, eu soube do próprio Arnaldo que ele ainda perseguia aquela história. Não a daquele crime. Esse ele mesmo acompanhou – caso comum e triste de violência doméstica – e escreveu muitas reportagens a respeito. O que Arnaldo realmente queria saber, o que lhe intrigava, de fato, era o segredo guardado naquele candelabro.

*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.

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