quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Debussy: 'Dança sagrada, dança profana'

Podemos discernir na música de Debussy as ressonâncias musicais entre a criação e uma certa tradição vinda do mundo da liturgia.


Dançarinas de Delfos no Museu Arqueológico de Delfos, tema da música 'Danseuses de Delphes' de Debussy.
Dançarinas de Delfos no Museu Arqueológico de Delfos, tema da música 'Danseuses de Delphes' de Debussy. (Adventures In Digital Archaeology)
Por Emmanuel Bellanger*
Faz em 2018 um século que Claude Debussy (1862-1918) deixou este mundo. Como sempre acontece com os grandes criadores, é fácil atribuir-lhe algumas características particulares, forçosamente redutoras: impressionismo, ondulações.
Comecemos com uma obra poucas vezes interpretada, e por isso a descobrir: “Dança sagrada, Dança profana”, de 1904. Debussy está então na plenitude da sua arte: a sua ópera “Pelléas et Mélisande” havia sido criada em 1902. Mas a obra breve que vos proponho hoje ilumina-nos sobre o seu mundo musical interior.
Debussy não nos deixou qualquer obra religiosa ou sacra, e é nisso que estamos interessados: o pioneiro que ele foi alimentava-se de uma tradição estética que se enraizava muito para lá do que no seu tempo se denominava como tradição.
Podemos discernir na sua música as ressonâncias musicais entre a criação e uma certa tradição vinda do mundo da liturgia. Sem que isso fosse claramente exprimido, trata-se, de fato, de um diálogo entre cultura e culto.
Assim, ouvimos nessas danças reminiscências de modalidade antiga e gregoriana. Em 1904 está-se em pleno trabalho de restauração do canto gregoriano pelos monges de Solesmes, tanto no plano rítmico, como no das escalas modais; todas essas questões agitaram os compositores e musicógrafos da época.
Por outro lado, conhecemos o interesse de Claude Debussy pelas esculturas antigas que descobriu no parisiense museu do Louvre.
O termo “sagrado” não deve ser entendido aqui no sentido habitual, mais próximo do hierático, solene, nobre. A dança que propomos é uma sarabanda, isto é, uma dança lenta que dá a impressão de que se trata de erguer um culto misterioso.
A “Dança sagrada” foi escrita no modo dórico, o que dá a essa bela peça o caráter tão particular. A “Dança profana”, enraizada diretamente numa valsa algo lânguida, gira em torno de outro modo antigo, o lídio, que também dá uma cor quase exótica a essa música.
Essa coloração funda-se também numa instrumentação fora do comum: “Dança sagrada, dança profana” foi encomendada pela casa Pleyel, que procurava promover uma harpa por si fabricada. A obra foi escrita para harpa e orquestra de cordas.
Poder-se-ia dizer aos músicos o que Debussy dizia aos pianistas que interpretavam a sua sonata para violoncelo e piano: «O piano não luta contra o violoncelo, acompanha-o». Aqui as cordas não lutam contra a harpa, antes, acompanham-na.
Um pequeno suplemento: como eco à “Dança sagrada”, a abertura do primeiro livro dos “Prelúdios”, obra para piano intitulada “Bailarinas de Delphos”. Não estaremos nós no mesmo mundo musical? Hieratismo, solenidade, nobreza…

Pastoral da Cultura
*Depois de estudar no Conservatório Nacional de Música de Paris e no Instituto Gregoriano, Emmanuel Bellanger seguiu carreira como organista titular de Saint Honoré d'Eylau em Paris e professor no Instituto. Católico de Paris: Instituto de Música Litúrgica e Instituto de Arte Sacra (hoje ISTA) do qual foi sucessivamente eleito diretor. Ex-chefe do departamento de música do SNPLS da Conferência dos Bispos da França, atualmente é diretor do conselho editorial da Narthex. Sempre se interessou pela música como lugar de experiência sensível que toda pessoa, independente de se considerar músico ou não, é chamada a viver.

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