terça-feira, 8 de agosto de 2017

Quando a religião é profética

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As irmãs estão certas quando denunciam que a compaixão e o amor são vazios quando são separados das obrigações da sociedade para os mais vulneráveis.
Irmãs percorreram os EUA de ônibus em campanha em 2015.
Irmãs percorreram os EUA de ônibus em campanha em 2015. (CNS)
Por E. J. Dionne Jr.*

Os votos dos senadoras republicanos Susan Collins, Lisa Murkowski e John McCain para impedir a revogação do Obamacare (Lei que objeitva ampliar o acesso a programas de saúde nos EUA) por seu partido foi de uma coragem genuína.

O surgimento dessa atitude virtuosa em tempos sombrios como os atuais não é necessariamente milagrosa, mas não pude deixar de notar a impressionante intervenção neste debate por sete mil cento e cinquenta freiras americanas que chamaram a proposta central do Senado, de revogar a lei de cuidados médicos, como "a legislação mais nociva para as famílias americanas de nossas vidas".

Em uma carta organizada pela rede de justiça social católica, as freiras citavam o Papa Francisco: "a saúde não é um bem de consumo, mas um direito universal, de modo que o acesso aos serviços não pode ser um privilégio", e apontaram também com agudeza: "Cortar o Medicaid (programa social de saúde para pessoas de baixa renda) e as políticas de cuidado da saúde de milhões de pessoas não é uma posição pró-vida".

Seu apelo foi um aviso, em particular para os liberais mais seculares, de que o testemunho religioso na política não se limita ao direito político, o cristianismo tem muito a dizer sobre desigualdades econômicas e sociais. De fato, isso impulsionou os profetas inspirados pela fé. Ir até o âmbito público com este tipo de políticas de corte seria prejudicial aos progressistas e aos conservadores.

Ao falar como eles o fizeram as freiras de pensamento social - que fazem o trabalho de justiça e misericórdia todos os dias em hospitais, clínicas, escolas e abrigos para moradores de rua - deixaram claro que privar milhões de americanos de cobertura de saúde é verdadeiramente indigno moralmente. Todavia, embora os mais conservadores entre os fiéis possam não apreciá-lo, as irmãs também fizeram um serviço aos crentes de todas as linhas políticas, acabando com os estereótipos sobre o que significa ser religioso.

Isso é importante porque a religião e a posição política dos crentes são gravemente prejudicadas pelo fato de muitos americanos associarem a fé exclusivamente ao movimento conservador. Um grande número de jovens está abandonando a religião organizada (e particularmente o cristianismo). Uma razão importante: eles a consideram muito hostil às causas que abraçam principalmente os direitos dos gays e das lésbicas.

O sociólogo e politólogo Robert Putnam, da Universidade Harvard, e David Campbell, de Notre Dame, autores da "American Grace", um estudo detalhado de dados sobre atitudes religiosas americanas em 2010, concluíram que os jovens americanos "foram alienados da religião organizada por sua política cada vez mais conservadora". Uma pesquisa PRRI em 2014 descobriu que, entre os millennials1 que já não se identificam com a religião da infância, quase um terço disse que "ensinamentos negativos sobre o tratamento de pessoas gays e lésbicas" eram ou foram um pouco ou muito importantes para sua desfiliação.

É verdade que alguns, particularmente, mas não exclusivamente, de esquerda, criticam a religião e os que se dedicam a ela por princípio. Eles acreditam, devotamente, que a fé em Deus é irracional e destrutiva. Eles creem que a religião promove a passividade, a conformidade e, em casos extremos, a violência. A popularidade do livro do falecido Christopher Hitchens "deus não é grande" (ele não colocou letra maiúscula no nome "Deus" propositadamente) fala da força desta visão entre um grupo considerável de americanos.

Mas os estudos do PRRI e do Pew Research Center sugerem que pelo menos alguns que se afastaram da filiação religiosa formal não veem a crença em si como uma coisa ruim e continuam espiritualmente engajados. Eles se desligaram pelos aspectos mundanos e não pelos aspectos transcendentais ou espirituais da religião.

Alexis de Tocqueville, perspicaz estudante do século XIX da vida americana, observou em "Democracia na América" ​​que a religião era mais forte e enfrentava menos hostilidade nos Estados Unidos do que na Europa, precisamente porque a fé em na costa americana era muito menos engajada em apoiar o poder político e interesses ideológicos.

"Os incrédulos na Europa atacam os cristãos mais como inimigos políticos do que como religiosos", escreveu Tocqueville. "Eles odeiam a fé como a opinião de um partido muito mais do que como uma crença equivocada, e eles rejeitam o clero menos porque são representantes de Deus do que por serem amigos da autoridade". Os apologistas religiosos do presidente Trump devem tomar nota.

Um crítico poderia observar que o argumento que eu ofereço aqui é naturalmente agradável para mim como um liberal. No entanto, meus irmãos conservadores que se preocupam com o declínio da religião devem considerar que um secularismo desenfreado pode ser menos culpado do que um estreitamento do alcance do engajamento público baseado na fé. A insistência do Papa Francisco de que a igreja se associe mais com a justiça e a misericórdia do que com a guerra cultural pode assim ser vista como precisamente o antídoto certo para o que aflige a religião organizada.

As irmãs estão certas quando denunciam que a compaixão e o amor são vazios quando são separados das obrigações da sociedade para os mais vulneráveis. Elas também deixam claro que a fé é algo mais do que uma engrenagem na máquina política do status quo.

E.J. O endereço de e-mail de Dionne é ejdionne@washpost.com. Twitter: @EJDionne. (C) 2017, Washington Post Writers Group.


[1] Trata-se de uma categoria sociológica usada para descrever aquelas pessoas que nasceram em torno ao ano de 1985. Também são chamados de Geração Y e correspondem ao grupo que agora são adultos jovens.

Commonweal Magazine
*E.J. Dionne Jr. é jornalista e analista político americano

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