quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O contracheque de meio milhão

por Helio Gurovitz
Juiz Mirko Vincenzo Giannotte
O contracheque do juiz Mirko Vincenzo Giannotte, da 6ª Vara de Sinop, no Mato Grosso, tornou-se um símbolo dos privilégios concedidos à elite do funcionalismo público. Como revelou o jornal O Estado de S.Paulo, Giannotte recebeu em julho a fábula de R$ 503.928,79. Isso mesmo: meio milhão de reais entre salários e penduricalhos garantidos por lei. Isso mesmo: garantidos por lei.

“Estou dentro da lei e estava recebendo a menos. Cumpro a lei e quero que cumpram comigo”, disse Giannotte ao jornal O Globo. Mas como? Não existe um teto salarial do funcionalismo público? Que tipo de justificativa pode ser usada para pagamento tão absurdo?

O artigo 37 da Constituição, inciso XI, é explícito: “A remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta e autárquica e funcional, dos membros de qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios e dos detentores de mandato eletivo não poderão exceder o subsídio mensal em espécie dos ministros do Supremo Tribunal Federal” (hoje de R$ 33.763,00).

Mas o caso de Giannote está longe de ser o único. Só em Mato Grosso, o Tribunal de Justiça (TJ-MT) pagou em julho uma remuneração superior a R$ 100 mil a ele e a 84 outros magistrados. Os pagamentos, relativos a substituições entre 2005 e 2009, algumas alegadamente sob situação de insalubridade, foram suspensos ontem pela corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O TJ-MT os justificava amparado numa decisão do início do ano sobre um caso semelhante. A corregedoria negou a autorização.

Mesmo que o pagamento aos juízes mato-grossenses não seja recorrente, ele revela o tipo de artimanha usada para driblar o teto constitucional. Basta considerar que o dinheiro não corresponde a “remuneração”. Todo tipo de pagamento adicional é considerado “verba indenizatória”: auxílio moradia, auxílio-paletó, carro oficial, verba de combustível, abonos etc. Instaurou-se no país a cultura do penduricalho.

Tente convencer o presidente de uma empresa privada a pagar mais a seus funcionários com base nessa lógica abstrusa e será na certa enxotado. Pois, no estado brasileiro, os tais penduricalhos vicejam como o musgo nas pedras à beira das cachoeiras – um musgo verde e escorregadio. É preciso fazer secar a fonte.

O Judiciário e o Ministério Público são as corporações mais limosas. Prova da incompetência do nosso governo para lidar com o peso da máquina pública é a inexistência de um levantamento completo sobre essas distorções nos três poderes e seu impacto orçamentário. O governo se beneficiaria muito disso na hora de convencer a população da necessidade de reformas como a previdenciária, cujo objetivo não é (ou não deveria ser) reduzir benefícios aos pobres, mas acabar com privilégios como os de Gallotte.

Alguns indícios revelam que a extensão do problema é bem maior do que se pode imaginar. A tese de doutorado apresentada no início do ano pela pesquisadora Luciana Zaffalon Cardoso na Fundação Getúlio Vargas-SP fez um levantamento da situação no estado de São Paulo. Entre janeiro de 2011 e junho de 2016, a Assembleia Legislativa paulista aprovou 32 leis relativas ao sistema de Justiça. Apenas 17% não tinham impacto pecuniário nenhum; 47% dispunham explicitamente sobre questões remuneratórias e vantagens.

Em 2015, último ano para o qual havia dados disponíveis, 1.860 dos 1.920 procuradores do estado receberam acima do teto constitucional, 6% mais que o dobro. “O rendimento médio mensal dos membros da carreira do Ministério Público em 2015 foi de R$ 46.036,30, sem contabilizar 13.° salário e férias”, afirma a tese de Luciana. Na defensoria pública, a extensão do problema é menor. Apenas 12 dos 716 registros levantados tinham rendimento mensal médio acima do teto. A média foi de R$ 26.980,00.

A opacidade da magistratura impediu que Luciana realizasse um levantamento detalhado para o salário de juízes e desembargadores. Ela recebeu do TJ-SP apenas um arquivo com mais de 200 páginas, em formato incompatível com qualquer software de conversão para planilhas. “Assim como não foi possível observar a estrutura remuneratória da magistratura paulista ou aferir os valores pagos aos seus membros, também não foi possível compreender quais os complementos remuneratórios percebidos por eles”, escreveu ela.

Com base no relatório anual do CNJ, ela verificou que a despesa média mensal com juízes paulistas é de R$ 45.906,00, também acima do teto constitucional. “Não é possível compreender como esses valores são compostos, como são distribuídos por tipo de recebimento e qual o percentual destinado aos recebimentos para além do subsídio”, diz.

É escandaloso que o país não disponha de um levantamento público completo sobre a remuneração do funcionalismo – e os casos em que ela extrapola o teto. O Supremo Tribunal Federal (STF) foi cristalino ao decidir por unanimidade, em 2015, que o teto constitucional deve ser aplicado sobre o valor bruto da remuneração. Seria preciso também incluir dele todo tipo de verba indenizatória, para acabar com os abusos e penduricalhos.

“Todo penduricalho é inconstitucional”, disse ontem o ministro Gilmar Mendes. “Precisamos pôr ordem nesse caos.” Gilmar tem toda razão. Um bom começo seria o próprio STF, onde sete dos onze ministros receberam em julho acima do teto (R$ 37.476,93), graças a um “abono de permanência”.

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