sábado, 12 de agosto de 2017

Com Neymar, Catar deixa seus rivais sem armas

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O futebol transcendeu aos delimitados espaços das canchas.
O futebol, mais um emblema intacto como a capital francesa e Neymar ofereceram aos catarenses um primeiro plano de luxo.
O futebol, mais um emblema intacto como a capital francesa e Neymar ofereceram aos 
catarenses um primeiro plano de luxo. (Christian Hartmann/ Reuters)
Por Eduardo Febbro

As 10.000 camisetas com o número 10 e o nome de Neymar vendidas pela equipe francesa PSG, em apenas 24 horas, são um suspiro de bebê se comparado ao alto grau geopolítico que encerra esta milionária e aberrante operação de transferência, cujo principal beneficiário não é o jogador, nem a equipe do PSG, nem o futebol em si, mas, ao contrário, o proprietário do clube, o Catar. Sem disparar um só canhão e através das delicadas influências do Soft Power Catar, com a compra de Neymar do Barcelona e a exposição que a acompanhou, colocou no bolso a opinião pública mundial e, com isso, venceu uma batalha considerável na guerra diplomática e militar do Catar com a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito. 

No último dia 5 de junho, estes quatro países romperam suas relações diplomáticas com o Catar, ao mesmo tempo em que lhe impuseram sanções econômicas. Liderados pela Arábia Saudita, os antigos sócios do Catar acusam ao emirado de manter laços com grupos extremistas e de não manter as suficientes distâncias com o Irã. Desde o início de junho, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito também lançaram uma voraz campanha de desprestígio nos meios de comunicação internacionais, com a finalidade de isolar aos catarenses. 

Em poucas semanas, o pequeno emirado de 2,6 milhões de habitantes deixou seus adversários sem armas para combatê-lo. O futebol, mais um emblema intacto como a capital francesa e Neymar ofereceram aos catarenses um primeiro plano de luxo. 

Mathieu Guidère, um reconhecido professor de geopolítica árabe, comentou que, “no momento, os adversários do Catar estão paralisados frente a esta estratégia. Nenhum deles conta com um argumento de comunicação tão poderoso no plano internacional. Há vários dias, ninguém fala da imagem negativa do Catar, mas, ao contrário, apenas a respeito da transferência de Neymar. Fica claro, aqui, que o esporte serve para romper o isolamento político do Catar. A ideia de esporte se impõe sobretudo aos demais”.

O futebol transcendeu aos delimitados espaços das canchas. A dimensão política deste esporte não é nova, mas “o golpe” de caráter universal dado por Catar com a compra e transferência de Neymar ao PSG é uma demonstração magistral de como vencer uma guerra com instrumentos incruentos. Não é por acaso que a FIFA conta com mais filiados (211) que as Nações Unidas (192). 

Conforme destacou há alguns anos Pascal Boniface, diretor do IFRI (Instituto Francês de Relações Internacionais) e, entre outros, autor do ensaio La Terre est ronde comme um ballon: Géopolitique du football (A terra é redonda como uma bola: Geopolítica do futebol), “o futebol se expandiu mais que a democracia, internet e a economia de mercado”. No mesmo ensaio, Bonifacee escreveu: “O futebol é um elemento constitutivo das relações internacionais contemporâneas (...) A vida do futebol tem repercussões sobre a imagem das nações, sobre a política internacional, os problemas ligados à paz e às guerras”. 

Os catarenses compreenderam o alcance desse Soft Power aplicado ao futebol. Mas, também não são novos na disciplina. Há anos, o Catar trabalha com vários símbolos desse Soft Power, começando pelos canais de televisão que lhes pertence. Al-Jazeera e Bein Sport, a companhia Qatar Airways, outrora patrocinadora do Barcelona de Messi (2010-2016, 171 milhões de euros) e, também, a organização do mundial de futebol de 2022, cuja atribuição aos catarenses constitui um precioso manual de corrupção das instâncias esportivas e políticas do mundo.

O Catar conta com uma infinita conta corrente bancária alimentada com os lucros das exportações do Gás Natural Líquido, do qual é o primeiro exportador mundial. Sua expansão em escala internacional foi uma constante nos últimos 20 anos. Os catarenses realizaram gigantescos investimentos internacionais no ramo imobiliário, na hotelaria de luxo, no transporte aéreo, nos meios de comunicação e no esporte. Paris e sua equipe de futebol, o PSG, foram o eixo maior dessa trama de influências. Desde que, em 2011, o emir do Catar, Tamin bin Hamad al-Thani e Nasser Al-Khelaïfi (hoje presidente do PSG e do Bein Sport) se tornaram responsáveis pelo clube da capital francesa, o PSG gastou cerca de 1 bilhão de dólares na compra de jogadores, entre eles Javier Pastore (41 milhões de euros) e Ángel Di María, por quem pagaram 63 milhões de euros. Só é superado por outro dirigente do Golfo Pérsico, o xeique de Abu Dhabi Mansour bin Zayed Al Nahyan, proprietário do Manchester City, que gastou 1,050 bilhão de euros.

Catar, com o futebol e agora com Neymar, comprou uma tela gigante aberta para o mundo. Diante do obscurantismo confessional de seus vizinhos, o papel que desempenham (Arábia Saudita) nas guerras regionais (Iraque, Síria, Iêmen) e a macabra ditadura egípcia, o Catar se parece com um jardim paradisíaco graças a estas operações esportivas. Sua imagem ficou colada à da magia dos pés de Neymar. 

Christophe Lepetit, economista no Centro de Direito e Economia do Esporte, comenta que “se trata de uma estratégia perfeitamente coerente e muito bem pensada. Diante de uma imagem nem sempre boa, o Catar apostou no esporte”. Para isso, o emirado precisava muito mais do que o patrocínio de um clube, mesmo que se tratasse do Barcelona. Encontrou a salvação quando adquiriu o Paris Saint-Germain, por meio do fundo Qatar Sports Investiments (100 milhões de euros). Faltavam-lhe ainda duas coisas: vencer a Champions e uma estrela universal. A Champions, até agora, o PSG nunca conseguiu vencer, mas, ao contrário, levou até o final a “Operação Neymar”, que é, segundo argumenta Christophe Petit, o “resultado de uma estratégia desenhada no próprio coração do poder catarense” e na qual Neymar é “a proa do navio”. 

Alfred Wahl, historiador especialista em história do futebol, recorda que “o Catar é um pequeno país, muito rico, mas sem poder militar. Tem-se a impressão de que o poder que adquiriu através do esporte substitui o poder que outorga um exército de alto nível. De alguma maneira, Neymar é um como a bomba atômica do Catar”. O investimento futebolístico é infinitamente menor que o militar e traz, por agora, mais vantagens. 

Em 2017, o Catar comprou aviões de combate norte-americanos F-15 por 11 bilhões e gastou outros 5 bilhões na compra de sete barcos de guerra da Itália. O pequeno emirado é uma verdadeira empresa de expansão global. Dos pés de Neymar dependem suas futuras conquistas e as formas como o emirado pode derrotar seus antagonistas regionais.


Página/12, 07-08-2017

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