segunda-feira, 24 de julho de 2017

Como o artigo de La Civiltà Cattolica desafia a esquerda católica?

domtotal.com
Artigo do padre Spadaro e do pastor Figueroa gera polêmica e debate sobre o pontificado de Francisco.
Papa Francisco fala com jesuítas Pe. Antonio Spadaro, editor da La Civilta Cattolica, a bordo de um vôo de Roma para Cracóvia, Polônia, em 2016.
Papa Francisco fala com jesuítas Pe. Antonio Spadaro, editor da La Civilta Cattolica, a bordo de um vôo de Roma para Cracóvia, Polônia, em 2016. (CNS / Paul Haring)
Por Michael Sean Winters

Independentemente do que tenha alcançado, o artigo publicado na revista La Civiltà Cattolica pelo padre jesuíta Antonio Spadaro e pelo reverendo presbiteriano Marcelo Figueroa sobre a aliança entre católicos conservadores e evangélicos nos EUA gerou um dos debates mais interessantes que vi nos últimos anos. Obviamente, muitas das reações buscaram dar uma resposta ao artigo da Civiltà. Sobre isso já escrevi no começo desta semana. Nos próximos dias, porém, quero me aprofundar em alguns destes debates, a começar por hoje com uma tentativa de responder a esta importante pergunta: Como o artigo da revista Civiltà desafia a esquerda católica?

Na parte final do artigo, os autores escrevem:

Francisco rejeita radicalmente a ideia da implantação do Reino de Deus sobre a terra como fora na base do Sacro Império Romano e de todas as formas políticas e institucionais similares, inclusive no nível de um "partido". Se assim fosse entendido, de fato, o “povo eleito” entraria em uma complicada trama de dimensões religiosas e políticas que o fariam esquecer que está a serviço do mundo e  colocando-o em oposição àqueles que são diferentes, a quem não pertence a ele, isto é, ao “inimigo”.
Embora estas palavras concluam uma análise de elementos conservadores extremos, podemos encontrar alguns destes mesmos atributos na esquerda religiosa.

A frase “implantação do Reino de Deus” traz à mente mais do que algumas poucas ideias e atitudes encontradas na esquerda. Lembram do “movimento de congelamento nuclear” da década de 1980 ou de sua contraparte atual? Existe a confiança de que, se estes armamentos declaradamente horríveis forem postos de lado, iremos ter a “implantação do Reino”, pelo menos em parte. Na melhor das hipóteses, isto ingênuo: centenas de milhares morreram no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque sem se recorrer a armas nucleares.

Na medida em que um compromisso com o desarmamento é uma expressão do pacifismo cristão, eu o elogio por completo, mas uma das notas do pacifismo cristão é uma disposição a sofrer e esta disposição é o contrário da animação esbaforida, otimista que, frequentemente, se vê entre os ativistas da esquerda católica. Apoio totalmente a diminuição do número de armas, nucleares e outras, mas uma tal redução não fará surgir o fim dos tempos.

Uma “complicada trama de dimensões religiosas e políticas” existe na esquerda também. Há católicos que irão se abster de criticar um democrata porque “isto iria somente ajudá-los [os republicanos]”, cometendo o mesmo tipo de equívoco maniqueísta que o artigo em Civiltà são desafiadoramente identifica na direita. Já vi pessoas que sabem que é melhor absterem-se de criticar abertamente aqueles com cargos de poder porque não querem correr o risco de não mais serem convidados a voltar, assim talvez perdendo o acesso a este mesmo ambiente de poder.

E existe também a questão do financiamento. Nos últimos anos, muito dinheiro foi distribuído na esquerda católica a grupos dispostos a se manifestar contra os correligionários opositores aos direitos LGBTs. Suspeito que a maior parte dos destinatários deste dinheiro ficaria feliz em agir desse modo sem o tal apoio financeiro, seguramente para apoiar leis não discriminatórias. Porém este tipo de financiamento teve o efeito indesejado de pôr uma atenção muito maior sobre problemas significativos a uma porcentagem pequena da população à custa de outros problemas com significação igual ou maior ao corpo político como um todo.

Dito isso, em minha experiência, temos uma probabilidade muito menor de encontrar pessoas na esquerda cristã que “[perdem] a consciência do seu estar a serviço do mundo”. É notável a grande quantidade de indivíduos em cargos de responsabilidade nas publicações da esquerda católica e em institutos (think tanks) que moraram em uma casa do Movimento do Trabalhador Católico, que se juntaram ao Corpo Jesuíta de Voluntários (Jesuit Volunteer Corps), ou que trabalharam com o Corpo de Paz. Estas pessoas podem, ou não, continuar a desenvolver egos limitados, porém sabem o que significa pôr a mão na massa.

Um outro ponto a desafiar a esquerda, assim como a direita, é a tendência a associar um argumento moral a políticas e partidos específicos. Spadaro e Figueroa escrevem:

Sobre qual sentimento se apoia a tentação sedutora de uma aliança espúria entre política e fundamentalismo religioso? Sobre o medo da fratura da ordem constituída e sobre o temor do caos. Ou, melhor, ela funciona justamente graças ao caos percebido. A estratégia política para o sucesso torna-se a de elevar os tons da conflitualidade, exagerar a desordem, agitar os ânimos do povo com a projeção de cenários inquietantes para além de todo realismo.

A religião, nesse ponto, se tornaria garantia da ordem, e uma parte política encarnaria as suas exigências. O apelo ao apocalipse justifica o poder desejado por um deus ou conivente com um deus. E o fundamentalismo, assim, se revela não como o produto da experiência religiosa, mas como uma concepção pobre e instrumental dela.
Há aquelas pessoas na esquerda que são capazes de esboçar cenários apocalípticos também. Com certeza, existem situações nas quais uma diretriz pode levar a resultados horríveis. O debate atual sobre o sistema de saúde é um exemplo óbvio. É “apocalíptico” apontar que, sem acesso a planos de saúde, mais pessoas irão adoecer, e que pessoas muito adoecidas morrerão mais cedo do que se tivessem acesso?

Sempre é preciso fazer uma distinção quando pessoas com motivações religiosas adentram a arena política: a distinção entre pessoas que pensamos que estão erradas, e aquelas que pensamos que são más. Eu acho que [o presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos] Paul Ryan está errado, mas não o acho uma má pessoa. Penso que ele bebeu demasiado no poço do pensamento libertariano, acredita em certas coisas que, certamente, não são compatíveis com a doutrina social católica, porém não creio que ele esteja enganando intencionalmente pessoas, incluindo a si próprio.

Às vezes, pessoas de todos os lados não conseguem fazer tais distinções e, então, o debate se torna cruel e amargo de um jeito que não deveria ser, e ataques ad hominem substituem argumentos com base em informações. Guardem as condenações públicas de uma pessoa, em oposição a uma ideia, para os momentos em que se fazem necessárias, como no confronto ao presidente Donald Trump!

Há também aqueles na esquerda que se encontram associados a políticas específicas de um modo que impede a experimentação e um potencial melhoramento. Não sou a favor de reduções em programas de assistência à saúde, na ausência de algo para cobrir os indivíduos atualmente inscritos neles, mas sou a favor de tentativas de melhorá-los. Sou favorável a autorizar que os estados e municípios experimentem diferentes programas e que reconheçam que os nossos amigos da direita frequentemente falam sobre subsidiariedade para este ou aquele programa federal, porém não há governadores ou prefeitos republicanos pondo-se a resolver o problema que o programa federal deveria resolver. Disso isso, o fato de um opositor político não ser sincero, ou estar equivocado, ou mesmo o fato de ele estar sendo malicioso não requer que fiquemos parados.

Em suma, embora compreenda o desejo daqueles na esquerda de celebrar o artigo publicado em Civiltà, e embora tenha me unido a esta celebração, sempre é um bom dia para fazermos uma análise de consciência. Como escrevi dias atrás, há problemas na direita cristã que lhes são únicos, mas há também muito na cosmovisão de Francisco que nos desafia – nós da esquerda religiosa. Uma das verdadeiras bênçãos da religião na sociedade civil é que ela fornece uma base sólida a partir da qual criticar esta sociedade e, embora a autocrítica possa ser árdua, ela também é necessária.


National Catholic Reporter/ IHU
Tradução: Isaque Gomes Correa

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