terça-feira, 23 de maio de 2017

"The Keepers": nova série da Netflix narra a história do assassinato não solucionado de uma freira

domtotal.com
Irmã Cathy Cesnik, uma das mais queridas professoras na escola, desapareceu em uma noite em 1969.
Quem matou irmã Cathy?
Quem matou irmã Cathy?
Quem matou irmã Cathy? (Netflix)
Por Nick Ripatrazone

Fundada em 1965, a escola de Ensino Médio Arcebispo Keough em Baltimore (EUA) parecia o lugar ideal para o florescimento do otimismo pós-Vaticano II. A escola das irmãs de Notre Dame ensinava a todas as moças da escola um sentido estrito de ordem, e ainda assim, as alunas ficavam empolgadas e orgulhosas de estudar nesta escola. Foi um lugar de empoderamento e esperança, onde a frase "Mulheres de uma nova era" não foi apenas uma linha a mais no hino da escola, mas um grito de guerra.

"Devíamos ser mulheres atingindo o nosso pleno potencial", diz uma estudante. "Supúnhamos que era um lugar seguro". Detrás do preto e branco das fotos do anuário das alunas sorridentes carregando pilhas de livros e subindo as escadas produzia-se um escândalo no campus, um crime horrível. A irmã Cathy Cesnik, uma das mais queridas professoras na escola, desapareceu em uma noite em 1969. Quando o seu corpo foi encontrado dois meses mais tarde, em um depósito de lixo, os alunos e a comunidade ficaram destroçados. O caso continua aberto.

"The Keepers", um novo seriado original da Netflix, é um excelente seriado, uma viagem metódica e de contínuos mistérios no fundo deste caso desolador. Quase cinquenta anos mais tarde, as feridas permanecem abertas em Baltimore e o método do diretor Ryan White de desdobrar lentamente a complexidade da história, às vezes contraditória na vida real, oferece uma visão de dor e suspense. Este não é um seriado fácil de assistir. Mas, uma vez iniciado, é difícil parar.

O seriado começa com o velho jornalista de investigação, Tom Nugent, dando passos incertos através em um sótão repleto de caixas de arquivos e histórias publicadas. Ele não escreveu sobre a irmã Cathy até meados da década de noventa, quando o caso não resolvido foi retomado pelo terrível testemunho de "Jane Doe", uma ex-aluna da Escola Keough que alegou que alguém mostrou para ela o cadáver da irmã Cathy como um aviso de morte para manter silêncio sobre o abuso sexual que ela diz ter sofrido de um sacerdote na escola, Padre Joseph Maskell.

Nugent diz que houve uma notícia oficial sobre o que aconteceu com a Irmã Cathy, e depois se descobriu que houve todo "um mundo escondido abaixo disso que estava realmente sendo vivido, e chegar a esse mistério, eu acho, é a nossa maior responsabilidade jornalística". Todavia, "The Keepers" capta o que acontece quando uma história trágica não é totalmente contada por jornalistas profissionais ou pela polícia. Gemma Hoskins e Abbie Schaub, duas ex-alunas da irmã Cathy se tornam jornalistas de investigação amadoras, emergindo como as heroínas do seriado. Estas mulheres são inteligentes, determinadas e com os pés no chão. Contudo, elas não passam de uma professora e uma enfermeira que tentam aprofundar o caso, enquanto suas cabeças se enchem de verdadeiros labirintos, falsos indícios, provas que desaparecem e histórias contraditórias.

Mas elas são perseverantes na sua investigação. Ligam para as pessoas envolvidas no caso, inclusive aquelas que poderiam desligar o telefone imediatamente ou fazer coisas muito piores. Elas viajam para entrevistar as vítimas de abuso. Elas criam mapas complexos sobre mesas de cozinha que incluem os nomes dos suspeitos escritos nos filtros de café, um símbolo apropriado para entender quão longe o caso da irmã Cathy adentrou em suas próprias vidas.

Contudo, "The Keepers" mostra que não poderia ser de outra forma. Todos nós queremos acreditar que os nossos professores foram todos especiais, mas parece que a Irmã Cathy foi verdadeiramente memorável. Uma antiga aluna disse que a escola tinha um punhado de jovens freiras, mas a irmã Cathy foi o "modelo de beleza de todas elas, fisicamente bonita, e o seu espírito era luminoso". As alunas brincava com ela, perguntando: "por que você iria querer ser uma freira?"

"The Keepers" mostra como foi o chamado da irmã Cathy para se tornar uma freira, uma vocação que o seriado desenvolve em contraste com o pano de fundo da " cidade essencialmente católica" de Baltimore, lugar da primeira diocese nos Estados Unidos. Nos anos que antecederam ao Concílio Vaticano II, Baltimore permaneceu como o único lugar católico onde cada bairro tinha sua própria paróquia. As famílias deixavam as suas casas em fileiras nas manhãs de domingo caminhando para a igreja. Baltimore não foi simplesmente um lugar onde os católicos viveram e foram na escola juntos; foi uma comunidade católica, onde a devoção privada e a oração se tornavam públicos através de cerimônias e a vivência ativa dos sacramentos.

Este foi o contexto em que a Irmã Cathy decidiu entrar no convento das Irmãs da Escola de Notre Dame. Suas colegas do postulantado a descreviam como muito espiritual e especialmente amável. Uma antiga freira descreve o silêncio do horário noturno, quando elas não deviam falar, exceto a freira que estivesse doente. Um dia, a Irmã Cathy bateu na porta desta freira, perguntado se ela estava bem e depois se sentou na borda da cama da sua colega enferma. A irmã Cathy pegou a mão direita dela e disse que tudo ia ficar bem.

A irmã Cathy "tinha compaixão de todos, isso foi um dos motivos pelos que ela entrou no convento", diz Cecelia Wambach, uma amiga e freira. "The Keepers" captura o modo como o espírito do Concílio Vaticano II chegou às dioceses e ordens americanas. "Este foi o papel dos religiosos, ser parte da mudança do mundo", expressou Wambach. A irmã Cathy se sentia chamada para o ensino. As alunas a chamavam de otimista, feliz e adorável. Ela amava a poesia e tocar violão. "Às vezes ela dava conselhos e às vezes ela só ouvia...ela tinha uma forma de acalmar a alma", diz uma antiga aluna.

Seu oposto seria, então, o padre Joseph Maskell, um sacerdote cujo nome tem sido associado ao caso da irmã, um padre cheio de acusações de abuso sexual. Mudado constantemente de paróquia em paróquia e mais tarde para diversas casas de saúde mental, o padre Maskell é retratado na série como um predador cruel, um homem que atacou Jane Doe em seu escritório de aconselhamento na Escola Arcebispo Keough e que depois se apressou para voltar à aula. O padre da história, o padre Maskell, não é novidade para os residentes de Baltimore. De fato, a Arquidiocese de Baltimore vem pagando indenizações aos seus acusadores desde 2011, mas a leitura de um relatório de notícias empalidece em comparação à audição de mulheres descrevendo o abuso em detalhes na tela.

"Detalhe" é um eufemismo. As mulheres contam suas histórias de agressão sexual, nojo e cólera, tanto que os espectadores podem se sentir e se perguntar de que forma todo isso foi possível. Infelizmente, como "The Keepers" alude aos mesmos elementos que aproximou às pessoas da comunidade católica, alguns segredos continuam com as pessoas. Este foi um mundo onde as crianças rezavam o terço durante a crise dos mísseis em Cuba, onde foi dito aos rapazes que ser coroinha era uma "honra e um privilégio". Um mundo onde a palavra de um sacerdote era tão boa como a palavra da Escritura e desobedecer, sem importar quão desconfortável a situação fosse, era quase uma afronta contra Deus.

No início de "The Keepers", Jane Doe é identificada como Jean Hargadon Wehner. Seu nome real foi conhecido por anos antes do seriado, mas o seu testemunho corajoso frente à câmara parece um passo necessário no processo da sua cura. Surpreendentemente, ela permaneceu uma católica fiel, inclusive até chegou se tornar uma ministra da eucaristia. Todas as pessoas retratadas neste seriado, alunos da escola, repórteres locais, membros da família e vítimas de abuso, são consumidas tanto pelo trauma destes anos como pelo desgaste na sua fé.

Mas a fé, espancada e quase quebrada, permanece. Um testemunho de como "The Keepers" respeita este assunto. Enquanto o seriado revela os pecados da igreja na crise de abusos, também documenta a fé das mulheres nesta comunidade como uma luz resplandecente, uma fé guiada pela memória da Irmã Cathy. A sua memória fez sobreviver a busca da justiça.

"The Keepers" tem mais para surpreender; a segunda metade do seriado tem mais emoções e viradas de histórias do que poderia empregar qualquer outro relato bem-sucedido de detetives. Falando das melhores coisas do seriado, "The Keepers" nunca se percebe como um seriado enrolado ou forçado. O seriado permanece honesto ao mundo decididamente católico que influenciou a Irmã Cathy para dedicar sua vida aos outros. Em uma cena, Tom Nugent diz que a classe operária católica de Baltimore daquele tempo "estavam vivendo o glorioso momento em que sua pequena filha coloca um véu e vai para a sua primeira Comunhão". Suas palavras se sentem como um lamento. Esse mundo desapareceu? "The Keepers" é uma história sobre um tempo quando a sagrada confiança da fé foi quebrada e como que essa ruptura continua a ressoar anos mais tarde, manchando o solo de nossas comunidades e manchando nossas almas.


America
Tradução: Ramón Lara.

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