domingo, 7 de maio de 2017

Recluso, Belchior chegou a se esconder em mosteiro


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Relação de Belchior e Edna tinha 'algo de incompreensível'

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A maior parte dos 120 mil habitantes de Santa Cruz do Sul, município gaúcho a cerca de 150 km de Porto Alegre, acordou surpresa na manhã do último domingo, 30 de abril. Corria a notícia de que Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, o Belchior, havia morrido, aos 70 anos, numa casa de um bairro nobre da cidade. Quase ninguém sabia que o músico, desde 2013, vinha se escondendo por lá com sua companheira, Edna Prometeu (o artista estava afastado da vida pública desde 2008). Até mesmo os moradores de sua rua ignoravam a presença do vizinho, que passou o fim da vida supostamente fugindo de credores e sem dinheiro, mas com amigos generosos.

Nos últimos quatro anos, após uma errática peregrinação pelo interior do Rio Grande do Sul, Belchior e Edna haviam se aquietado em Santa Cruz. “Aquietado” talvez não seja o termo mais adequado, já que o casal pulava de refúgio em refúgio, sempre dependendo da hospitalidade e da caridade de terceiros. Graças à discrição dessa rede de amigos, admiradores e mecenas, um dos maiores astros da MPB conseguiu se manter fora do radar da mídia e do público durante esse tempo todo, numa cidade pequena, onde as fofocas viajam rápido. Agora, os habitantes que acolheram a dupla em segredo em suas casas finalmente começam a abrir os seus baús de recordações.

Da passagem de quase quatro meses pela casa de Ubiratan e Ingrid Trindade sobrou um vestígio simbólico, segundo contam: um short e uma camisa já gastos, que Belchior usava para dormir no quarto onde estava hospedado, no segundo andar.

Nos últimos dias, o professor universitário de 56 anos não parou de dar entrevistas. Ele se vê exorcizando um segredo de anos:

— É muito difícil porque você não pode receber amigos em casa nem pode contar para a família. O Belchior era uma pessoa muito tranquila, passava a maior parte do tempo escrevendo e vendo filmes, conversava sobre todos os assuntos, era um erudito.

Belchior e Edna viviam de forma simples, e não pagavam conta alguma na casa. Traziam com eles apenas uma pequena mochila e telas para desenho. Edna dizia que os bens do casal estavam bloqueados pela Justiça. Ingrid lembra a única vez em que a convidou para fazer compras no mercado.

— Ela ficou feliz, mas pegou só o básico. Quando chegamos ao caixa, tirou um porta-moedas e ficou contando o dinheiro. Não a deixei pagar nada.

Na linha do tempo montada a partir de relatos, a casa dos Trindade foi o quarto dos pelo menos oito refúgios de Belchior e Edna na cidade. O compositor e sua companheira chegaram a Santa Cruz do Sul em agosto de 2013, por meio de Marcelo Leal, um integrante do Movimento dos Pequenos Agricultores do Rio Grande do Sul. Após abrigá-los durante três meses em sua casa em Seberi, norte do estado, levou-os até a Ecovila Karaguatá, uma comunidade sustentável no meio do mato, a 20 km da cidade. O plano do cantor, de acordo com Leal, era de lá voltar para o Nordeste e relançar a carreira. Mas, por alguma razão que ninguém sabe explicar, permaneceu no interior gaúcho.

O casal ficou três semanas na ecovila. Belchior ajudava no trabalho da terra, alimentava-se com comida orgânica e conversava normalmente com os outros hóspedes (a maioria não o reconhecia), mas passava a maior parte do tempo recluso em seu quarto, escrevendo e desenhando. Anfitrião da Karaguatá, o médico Aquiles Gusson conta que Edna se achava perseguida.

— Ele estava tranquilo conversando, mas era só aparecer um carro na entrada que Edna o fazia correr para o quarto — relata o médico. — Ela dizia que queriam matar o Belchior, porque ele tinha provas de que Elis Regina foi assassinada. Já ele não falava nada, apenas ouvia.

Ao sair da ecovila, o casal recebeu ajuda de Dogival Duarte, radialista local e fã do cantor, que o levou à hospedaria do Mosteiro Santíssima Trindade. Lá, Belchior treinava caligrafia, cantava em latim nas missas e pedia muitas folhas de papel (ele estaria, segundo a madre, traduzindo Shakespeare). Também tocava violão e cantava, a pedido das irmãs, os sucessos de seu repertório (a mais requisitada era “Paralelas”). No início, a madre Paula Ramos, de 87 anos, não sabia quem era o cantor. Em pouco tempo, virou fã:

— Entrei para o convento aos 20 anos, não tinha como conhecer. Agora já ouvi suas músicas e posso dizer que ele tem algo genial. As notícias de sua morte reavivaram lembranças nas irmãs, que têm passado estes dias cantando suas músicas.

Segunda a madre, a adaptação de Belchior no convento foi imediata, até por ele ter sido seminarista na juventude. Por causa dos apelos de Edna, que informou estar fugindo da polícia, o casal conseguiu permanecer um pouco além do tempo limite reservado para hóspedes. Foram duas semanas numa primeira passagem, em outubro de 2013, e mais alguns dias em dezembro do mesmo ano.

— Se dependesse só dele (Belchior), acho que ficaria para sempre por aqui — acredita a madre.

SEMPRE COCHICHANDO

Numa missa dominical no Natal de 2013, Belchior foi reconhecido por Ike, um colunista social local, que fotografou o astro. A pedido da madre, o jornalista esperou um mês para publicar a foto — e quando o fez, não mencionou o mosteiro. Curiosamente, a foto e a notícia tiveram pouca repercussão. As suspeitas de que o compositor continuava na região, porém, ganhavam força. Alguns repórteres do jornal da cidade, “Gazeta do Sul”, sabiam. Entre o respeito a Belchior e o furo de suas vidas, optaram pela primeira opção.

Para embaralhar as pistas, Edna queimava navios a cada hospedagem nova. Aos antigos anfitriões, nunca dava informações sobre o novo refúgio. Entre duas estadas curtas no mosteiro, o casal chegou a ocupar um prédio abandonado, dormindo no chão. Também se escondeu por um tempo na chácara dos Trindade, na área rural da cidade. Belchior foi apresentado ao caseiro como um “professor de filosofia”, e viveu, segundo Ubiratan, seu momento mais feliz no exílio. Mais livre para sair de casa, fazia caminhadas no mato e tocava violão. Em 2014, o casal ainda ficou na casa Dogival Duarte, que intermediou diversos contatos entre os "fugitivos" e os seus anfitriões.

Na casa de Dogival, Belchior gostava de cantar e ouvir as rádios da cidade. Com frequência, pedia para o anfitrião botar os seus discos para tocar. Porém, estava pálido pela falta de sol e muito magro, lembra o radialista.

— É difícil entender por que ele não queria voltar a se apresentar — diz Dogival. — Com dois ou três shows, pagaria todas as suas dívidas.

Todos que os anfitriões ouvidos pelo GLOBO lembram de Belchior como um hóspede agradável, bom de papo e de hábitos simples. Porém, a necessidade de sigilo criava momentos de tensão. Os Trindade lembram que até as raras saídas de carro à noite precisavam ser cuidadosamente organizadas por Edna (Belchior só entrava no veículo se ele estivesse estacionado na garagem). Para Ingrid, porém, a viúva vem sendo pintada como uma “vilã” pelas pessoas. Edna não foi localizada para comentar.

— Eles viviam juntos nessa bolha, e se acertavam desse jeito — opina Ingrid. — Nunca brigavam e estavam sempre cochichando.

Mesmo no "exílio", Belchior se mantinha produtivo, seja desenhando ou escrevendo. Ubiratan conta que mostrou a ele a campanha “Volta Belchior” na web. Emocionado, o cantor falou em uma volta triunfal, mas Edna ficou preocupada e ele desistiu. O professor também lembra que seu hóspede encheu várias páginas de um caderno. Ele não sabe o conteúdo do texto, mas acredita se tratar de uma biografia. Já Marcelo Leal lembra de ver Belchior escrevendo versos.

Não se sabe onde está este material produzido por Belchior. É possível que Edna tenha levado com ela para o Ceará, onde ocorreu o enterro do marido. Mas também pode ter deixado na última casa em que o casal se instalou, atualmente interditada pela polícia.

Nesse local, emprestado por um proprietário ainda não identificado, os dois moraram sozinhos pela primeira vez na cidade. Como faziam para pagar as contas é um mistério, já que antes haviam dependido financeiramente dos anfitriões. Belchior manteve o isolamento habitual, mas Edna saía para fazer compras no supermercado, revela o taxista Cláudio Batista, o Baiano, que fazia pelo menos duas corridas mensais com a viúva.

— Os dois tinham amigos de verdade, fiéis, para manter um segredo assim — diz ele. — Isso mostra que ainda dá para ter confiança nas pessoas.


Fonte: O Globo




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