sexta-feira, 7 de abril de 2017

Ressuscitados com o Crucificado para ressuscitar os crucificados

domtotal.com
Na Ressurreição de Jesus brota a plenitude e o triunfo da vida sobre a morte, da justiça sobre a injustiça, da libertação sobre a opressão, do amor sobre o ódio
Se Deus ressuscitou a um crucificado, ressuscitará também os crucificados da história.
Se Deus ressuscitou a um crucificado, ressuscitará também os crucificados da história. (Divulgação)
Por Antônio Ronaldo Vieira Nogueira*

Os cristãos temos a alegria de celebrar, a cada ano, a festa da Páscoa do Senhor. O evento salvífico da morte e ressurreição de Jesus é a expressão máxima do amor de Deus pela humanidade quando oferece, como dom, seu Filho Jesus Cristo. Dom tem uma dupla dimensão: é algo que nos é dado gratuitamente e sem merecimento de nossa parte. É assim que Deus vem ao nosso encontro, constantemente: sem pedir nada em troca e sem merecimento de nossa parte. Dito isso, fazemos uma constatação: normalmente nos identificamos com muita facilidade com o Cristo crucificado, mas a ressurreição é algo que ainda nos parece abstrato, não nos toca diretamente. Porém, quando celebramos a páscoa de Jesus, celebramos também nossa participação na morte e ressurreição do Senhor. Queremos agora refletir sobre como isso acontece.

Primeiramente é preciso reafirmar algo central no Novo Testamento: a identificação entre o Ressuscitado e o Crucificado. Isso pode ser resumido assim: “[...] vós o matastes, crucificando-o pela mão dos ímpios. Mas Deus o ressuscitou [...]” (At 2,23-24). Isso nos faz perceber que cruz e ressurreição são resultados concretos da vida e missão de Jesus: o Reino como justiça aos pobres e marginalizados. Assim, a cruz não foi algo sem mais, mas o cume de uma perseguição pelo que Jesus fez e disse em favor dos marginalizados e contra seus opressores. A ressurreição aparece também como confirmação da vida e missão de Jesus, na defesa dos sofredores. Com isso, também se evita absolutizar somente uma das realidades o que poderia levar a uma justificação do sofrimento dos pobres, sem qualquer esperança de mudança das estruturas (quando ficamos só com a cruz) ou, então, uma sacralização do triunfalismo e do êxito fácil, alienando da vida presente (quando ficamos só com a ressurreição).

Quando falamos da cruz, portanto, não podemos perder de vista que Jesus assumiu sua missão no meio dos pobres, proclamando que o Reino é deles (cf. Lc 6,20), indo ao encontro dos marginalizados, comendo com os pecadores, manifestando sua misericórdia a eles, denunciando as injustiças e opressões cometidas pelos poderes político e religioso de seu tempo. Assim, as perseguições não demoraram a acontecer e culminaram com a morte de cruz. A decisão de crucificar Jesus não foi uma opção qualquer, dentre outras possíveis, mas tinha como objetivo fazer com que Jesus passasse, ao senso comum, como um maldito de Deus, tendo em vista a prescrição de Dt 21,22-23, que declara malditos os que são suspensos no madeiro. Isso faria com que toda a vida e o projeto de Jesus fossem abafados e esquecidos.

Normalmente, o mesmo se faz com homens e mulheres que começam a se destacar em papeis de liderança na comunidade e nas denúncias aos poderosos: fazem-nos calar, seja tentando destruir nossa imagem moral, seja através de perseguições e até mesmo da morte infligida cruel e injustamente. Quem se coloca no seguimento de Jesus e é fiel ao projeto do Pai como ele foi, defendendo os pobres e denunciando os opressores, participa do mesmo caminho que levou Jesus à Cruz. Há ainda outros tantos que não abrem a boca, que só sofrem as injustiças e opressões de uma sociedade que “descarta e lança fora”, como nos lembra o Papa Francisco (Evangelii Gaudium, n.196).

A esses pobres e marginalizados, Ignacio Ellacuría (Jesuíta, professor da UCA de El Salvador e assassinado na mesma Universidade juntamente com alguns outros Jesuítas e mais duas funcionárias) chamava de povos crucificados: são eles os que reproduzem, na história, a cruz de Jesus, são eles o corpo de Cristo crucificado na história. Sua simples existência é a denúncia mais clara e evidente de que o projeto de justiça, amor e fraternidade não acontece e, enquanto houver uma só pessoa passando por situações de negação de sua dignidade humana, isso é sinal de que ainda não estamos seguindo suficientemente a Jesus, realizando o projeto do Reino. A participação na sua morte se dá, pois, quando tomamos a sério a mesma missão, lutando pela vida e dignidade dos crucificados.

Mas a morte de cruz não foi a última palavra de Deus para Jesus nem a morte dos pobres e marginalizados é a última palavra de Deus para eles. Irrompeu algo novo na história. Enquanto os opressores disseram não à vida e missão de Jesus, Deus diz “sim”, proclama que sua vida é a verdadeira vida, a vida agradável, porque fiel na realização de seu plano de amor, até o fim. Proclamamos a ressurreição de Jesus, “sim” de Deus àquele que queriam fazer passar por maldito. Confirmando a vida de Jesus pelo evento escatológico da Ressurreição, Deus proclama que o Reino acontece quando nos colocamos nos passos de Jesus, assumindo sua missão de justiça e fraternidade, na defesa dos pobres e injustiçados.

Na Ressurreição de Jesus brota a plenitude e o triunfo da vida sobre a morte, da justiça sobre a injustiça, da libertação sobre a opressão, do amor sobre o ódio. E nós podemos também participar dela, na medida em que nossa vida se conforma à de Jesus, numa doação ao anúncio e realização do Reino de Deus. Assim, a esperança de ressurreição não é, sem mais, genérica, mas para os crucificados da história: se Deus ressuscitou a um crucificado, ressuscitará também os crucificados da história. Isso não significa desuniversalizar a esperança na ressurreição, mas nos faz perceber que nossa participação na ressurreição acontece quando assumimos, como Jesus, as dores e sofrimentos dos crucificados da história. Se nossa vida é entregue por amor, como aconteceu a Jesus, ela é confirmada por Deus, como fez a Jesus. A participação na ressurreição exige também de nós uma práxis: pregar a ressurreição e servir ao conteúdo daquilo que pregamos. Isso significa anunciar a Boa Notícia de que, de uma vez por todas, Deus fez justiça ao injustiçado e é preciso que essa Boa Notícia vá se fazendo realidade na nossa práxis, ou seja, nossa missão continua a de Jesus, lutando pela justiça, paz, solidariedade, vida e dignidade dos mais fracos.

A celebração e experiência da páscoa deve fazer aparecer o que há de plenitude e triunfo na ressurreição de Jesus. Por isso, Jon Sobrino (Jesuíta basco, radicado há muitos anos em El Salvador) nos propõe três maneiras de experimentar a páscoa em nossa vida (cf. Revista Concilium, n.318, pp.96-107, 2006). A primeira é a liberdade que vence o egocentrismo. Ela é expressão de plenitude quando somos colocados na história para amar e de triunfo quando nada nos impede de amar. Nisso, Dom Romero é exemplo, pois amou os pobres e nada além deles; não se deixou escravizar pelo medo paralisante nem pelos obstáculos que se puseram à sua liberdade para servir no amor (perseguições, mortes de amigos e colaboradores e sua própria morte). A segunda é a alegria que vence a tristeza. Os pobres se reúnem para celebrar pequenas coisas, expressando o que há de positivo nelas e a alegria de estarem juntos, mesmo com tantos sofrimentos. Aqui aparece a plenitude; e o triunfo pode ser constatado no que um camponês disse uma vez a Gustavo Gutiérrez: “padre, o contrário da alegria não é o sofrimento, mas a tristeza. Nós sofremos, mas estamos felizes”. Por fim, a terceira é a justiça e o amor para descer da cruz os crucificados da história. A plenitude se manifesta na luta para ressuscitar as vítimas e o triunfo na superação dos riscos e do medo que isso gera. Isso é bem resumido por Dom Pedro Casaldáliga (Revista Concilium, n.318, 2006, p.122): “Pelo fato de eu ressuscitar, devo ir ressuscitando e provocando ressurreição. [...] A cada ato de fé na ressurreição deve corresponder um ato de justiça, de serviço, de solidariedade, de amor”!

Assim, participar da Páscoa do Senhor e testemunhá-la, nos dias atuais, exige o compromisso com os crucificados e contra seus crucificadores, com o mesmo ato de fé de Dom Romero: “se me matarem, ressuscitarei nas lutas do meu povo”!

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*Antônio Ronaldo Vieira Nogueira é mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte-MG e presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte-CE.

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