terça-feira, 18 de abril de 2017

Ressurreição subversiva

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Presença feminina na vida de Jesus nem sempre foi esmiuçada pela tradição religiosa como relatam os Evangelhos.
Mulheres são as primeiras a receberem a Boa-Nova que anuncia que o Cristo vive.
Mulheres são as primeiras a receberem a Boa-Nova que
 anuncia que o Cristo vive. (Reprodução)
Por Tânia da Silva Mayer*

A história de Deus com o ser humano, narrada na esteira da existência doada de Jesus Cristo, subverte toda compreensão e ordem mundanas. E é o cume dessa história que oferece as chaves necessárias para o desfecho do que havia sido anunciado, desde os profetas. O Filho de Deus entregou-se à morte, a fim de que todos vislumbrassem o esplendor de uma nova vida, sem ódio, violência, pecado e morte. O que não se pode deixar de dizer é que a entrega de Jesus se dá em meio ao seu assassinato, ele que foi morto por mãos de muitos, inclusive pelas dos poderosos da religião do seu tempo. Tudo isso é sinal da injustiça cometida contra o Justo: “com ele também crucificaram dois ladrões, um à direita e outro à esquerda de Jesus” (Mt 27,38). E é nesse horizonte que o cristianismo primitivo releu sua fé, destacando tudo aquilo que revela a singular história de Deus com a humanidade.

Na esteira das discussões de gênero, o que não se pode deixar de destacar é o lugar que as mulheres ocupam no discipulado de Jesus. Sua presença na vida dele nem sempre foi esmiuçada pela tradição religiosa como relatam os Evangelhos. Nas narrativas em que aparecem, sempre têm algo a mais a dizer que o mero silêncio a que foram submetidas ao longo dos anos. É a fim de romper esse silêncio que a teologia feminista preocupa-se em recuperar as narrativas bíblicas e a propor-lhes novas leituras, com o intuito de que possam aproximar-se da transversalidade que exigem. Nesse sentido, tendo celebrado a Páscoa de Jesus e percebendo como nossas homilias se recordam e se dirigem pouco à fé das mulheres da bíblia, há lugar nessa Oitava da Páscoa para falar desse aspecto subversivo da existência de Jesus com as mulheres.

As narrativas evangélicas que compõem o corpus bíblico da Páscoa nos fazem perceber a incompreensão que os discípulos e discípulas de Jesus guardavam a respeito do seu messianismo. A figura de Pedro é decisiva nesse aspecto: ele não quer ter os pés lavados pelo Mestre e Senhor (cf. Jo 13,6); está pronto para brigar e agir com violência por Jesus (cf. Jo 18,11); mas é capaz de negá-lo na hora em que o Mestre mais precisa dele (cf. Jo 18,27). Após a negação de Pedro, os discípulos não mais aparecem em primeiro plano nas narrativas. O Evangelista João relata somente a presença do discípulo amado aos pés da cruz, junto com Maria e as outras mulheres, e de José de Arimatéia e Nicodemos na preparação do corpo crucificado para a sepultura. Por sua parte, Mateus relata que havia grande número de mulheres olhando de longe a crucificação, elas que haviam acompanhado Jesus em seus caminhos (cf. Mt 27, 55). O Evangelista Marcos destaca também que muitas mulheres que seguiam a Jesus mantiveram-se com ele até a morte (cf. Mc 15,40). Para Lucas, no caminho da cruz, “uma grande multidão do povo e de mulheres que batiam no peito e choravam” iam ao lado de Jesus para o Calvário.

As narrativas da paixão ignoram a presença dos doze discípulos. Eles apartaram-se de Jesus na agonia da cruz. Fugiram. Por medo? Em contrapartida, as mulheres que ocupavam lugares sem prestígio na sociedade judaico-romana mantiveram-se com ele. Por curiosidade? Não. Elas estavam com Jesus desde a Galileia, já haviam servido a ele, também com ele foram à Jerusalém. Elas são as testemunhas oculares de tudo o que aconteceu ao Filho, por amor do mundo. Também nas narrativas de ressurreição, as mulheres são as primeiras a receberem a Boa-Nova que anuncia que o Cristo vive, que ele é o Vencedor da morte. Elas são as primeiras a ouvirem tudo isso, também as primeiras a serem enviadas a comunicar aos demais discípulos que Jesus Crucificado é Ressuscitado. Dessa percepção compartilham todos os quatro Evangelhos. João é ainda mais incisivo ao focar a imagem de Maria Madalena. Ela, como as outras mulheres, vence o medo, sai de casa e vai ao túmulo. Para prestar os últimos cuidados ao corpo de Jesus? Para chorar a tragédia acontecida? Por acreditar na força da vida? Lembrando-se das palavras de Jesus? Ela, elas vão ao túmulo. Do túmulo anunciam o que ninguém crê, transmitem uma nova fé.

Maria Madalena e as outras mulheres são as Apóstolas do Senhor, as primeiras. E isso é o que não podemos esquecer, sobretudo, em tempos nos quais nossos direitos encontram-se ameaçados. Em tempos nos quais o machismo patriarcal violenta e mata todos os dias muitas de nós. Em tempos nos quais relações equânimes tornam-se mais raras. Em tempos nos quais ganhamos menores salários para as mesmas funções. Em tempos nos quais as religiões ainda conservam uma linguagem infantil e machista para falar às mulheres e sobre nós. Ao menos pela lente cristã, Deus escolheu o que é fraco, frustrando as expectativas dos poderosos do mundo. E se o projeto salvífico é possibilitado pelo sim inequívoco da jovem Maria, a sua transmissão ao mundo é tarefa das mulheres, as testemunhas oculares de uma Ressurreição subversiva.

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE; Graduanda em Letras pela UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com

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