sábado, 1 de abril de 2017

Que tipo de heresia é o trumpismo?

domtotal.com
O Professor Bulzacchelli chama a atenção para a relação entre o apoio ao trumpismo e o testemunho fiel ao Evangelho.
"O apoio católico a Trump somente poderia ser considerado como 'perturbadoramente' alto". (Divulgação)

Por Charles C. Camosy*

Fiquei feliz pela resposta do Professor Bulzacchelli à minha sugestão de que o “trumpismo” é uma heresia. Muito embora tenhamos, obviamente, discordâncias importantes, o ponto de vista que ele apresenta conduz a atenção para a relação entre o apoio ao trumpismo e o testemunho fiel ao Evangelho. Isso tudo vem a somar para o bem.

Infelizmente, Bulzacchelli traçou uma série de críticas por vezes sem base em seu artigo. De modo mais infeliz ainda, ele o fez com uma retórica inflamada, acrescentando ataques pessoais ao argumento geral que elaborou.

Por exemplo, o teólogo geralmente cuidadoso iniciou sua resposta afirmando: “O apoio católico a Trump somente poderia ser considerado como ‘perturbadoramente’ alto, no entanto, se o apoio a Trump for, de alguma forma, intrinsecamente mau e incompatível com a fé – coisa que Camosy, na prática, propõe”.

Eis uma maneira infeliz de começar, pois não se segue que, se o apoio católico a Trump for perturbadoramente alto, um tal apoio deve ser intrinsecamente maléfico, e eu nunca propus que apoiar Trump ou o trumpismo seja intrinsecamente mau.

Há uma grande confusão acerca dos atos intrinsecamente maus em teologia moral, especialmente relativo ao voto. Aqui sugiro um artigo interessante escrito pela professora Jana Bennett, em que explica essa confusão.

O meu principal motivo ao lembrar a heresia do americanismo – as ideias político-religiosas propostas por muitos na Igreja americana do final do século XIX condenadas pelo Vaticano – era limpar o espaço conceitual para o meu argumento principal, invocando a inquietação histórica que Roma havia tido com muitos dos valores e princípios centrais da cultura política e da cultura geral dos EUA.

Na verdade, o Papa Leão XIII estava preocupado com que os católicos americanos se capitulassem a valores especificamente americanos (ou seja, os valores do Estado-nação) a respeito do – e contra o – Evangelho. Essa heresia foi chamada de “americanista” por um motivo: havia uma preocupação de que os bispos, inclusive Dom John Ireland, estivessem deixando o modernismo americano pôr de lado certos ensinamentos centrais da Igreja Católica.

Esta não foi a única vez que os EUA foram alvejados por Roma, evidentemente, e outras heresias também se alinham belamente com o foco do trumpismo expresso no dizer “a América em primeiro lugar”. A condenação da “estatolatria” feita por Pio XI, por exemplo, não poderia ter um objeto mais adequado do que o discurso inaugural de Trump, que insistiu numa política que possua “lealdade total aos Estados Unidos da América”.

De novo, o patriotismo é uma coisa boa, mas ele se torna herético quando essa coisa boa sai de seu lugar e começa a dominar elementos que são mais elevados. Os católicos americanos devem lealdade total não ao Estado, mas sim ao Evangelho de Jesus Cristo.

A interpretação que a Igreja tem do Evangelho significa reconhecer que o Corpo Cristo místico suplanta o corpo do Estado-nação. Num caso parecido, também significa que o destino universal dos bens suplanta o foco local em “interesses americanos”.

Bulzacchelli insiste que o “América em primeiro lugar” quer apenas dizer: “O dever principal do governo federal é buscar o bem-estar dos cidadãos americanos e, como chefe deste governo, é meu compromisso ser fiel a este dever: salvaguardar os interesses dos cidadãos dos Estados Unidos antes de me voltar a outras preocupações”.

Isso, porém, não responde ao meu argumento. Ninguém duvida que o presidente deve, em primeiro lugar, abordar os interesses dos cidadãos dos EUA. O ponto de vista que apresentei é sobre “em que os cristãos americanos deveriam estar interessados”. Os cristãos americanos, também disso ninguém duvida, deveriam estar interessados em que este país respeite o Evangelho.

Em resposta aos que diriam que o aborto, quando solicitado, é essencial para o florescimento profissional e a liberdade individual dos cidadãos americanos, devemos dizer: “Não”. Em resposta aos que diriam que os EUA devem ter práticas e políticas econômicas usurárias para maximizar a eficiência econômica e o crescimento do PIB, devemos dizer: “Não”. Em resposta aos que diriam que devemos destruir a vida humana precoce para salvar americanos de doenças devastadoras, devemos dizer: “Não”.

Cada uma destas práticas pode servir aos interesses dos EUA e de seus cidadãos, especialmente tendo presente um certo tipo de cálculo utilitário, mas os cristãos devem insistir em servir ao Evangelho, e não a estes interesses.

A postura “A américa em primeiro lugar” de Donald Trump e seu governo, é claro, tem conduzido a debates e políticas que servem aos interesses do país, mas que são contrários ao Evangelho:

• reconsiderar e louvar a prática da tortura

• “tomar o petróleo” do Iraque depois da nossa invasão (crime de guerra)

• assassinar no exterior filhos inocentes de terroristas suspeitos

• deixar morrer refugiados na Síria e em outros lugares

• mandar imigrantes indocumentados para a morte quase certa em seus países de origem – e mesmo separar mães e filhos na fronteira ao assim proceder.

Tenho visto um número preocupante de católicos americanos que tentam defender estas práticas (especialmente nas mídias sociais), e é quase sempre por meio de um tipo de cálculo ao modo “América em primeiro lugar” forjado no trumpismo.

Muitas das políticas acima, que empregam um tal cálculo, têm, realmente, o potencial de beneficiar os EUA, mas não deveria ser aí onde o nosso foco como cristãos americanos deve estar. A nossa lealdade total deve ser ao Evangelho, não aos Estados Unidos.


Crux, 28-03-2017.
*Professor associado de ética teológica e social na Fordham University e um dos editores do livro “Polarization in the US Catholic Church”.

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