quinta-feira, 23 de março de 2017

Um bom motivo para ficar careca

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A mulher sentada diante do espelho penteando os cabelos é cena tão antiga que lembra fotos amareladas dos anos 20.
Ela continua diante do espelho penteando os cabelos.
Ela continua diante do espelho penteando os cabelos. (Divulgação)
Por Ricardo  Soares*

Deitado na cama ele espiava a mulher que, de costas para ele, penteava os longos cabelos. O mundo vive sob o império monstruoso da violência e naquele momento, enquanto ele olhava aquela mulher penteando os longos cabelos, na cidade do Recife um pai estrangulava uma filha pequena. Já em Resende um padrasto estuprava sua própria enteada e na cidade de Volta Redonda três homens decapitados procuravam suas cabeças.

A mulher que penteava os cabelos usava uma escova fina, muito bonita mesmo. Tinha até cabo de madrepérola. Os cabelos envolviam suas mãos lisas e macias de dedos arredondados. Ela tinha lindas mãos e lindos pés. Os mais bonitos que ele já viu. E agora olhando aquela cena simples e belíssima (a mulher que ele  amava penteando os cabelos) tomava-se de uma ausência de desejo plenamente justificável. Aquilo não era uma mulher. Era uma miragem. Uma criatura divina que se fitava com orgulho diante do espelho abstraindo-se de um mundo estranho imerso em violência. Jamais ele seria capaz de dar um tapa naquele rosto por mais que ela o magoasse.

Quando uma mulher penteia o cabelo com gestos ritualísticos pouco se lembra dos outros. Ela não enxerga, quase não escuta o próximo por mais próximo que ele esteja. Ele estava ali, logo ao lado dela, olhando aqueles femininos e maravilhosos ombros nus. Falou alto e em bom som que não podia viver sem ela. Mas ela não ouvia porque penteava seus longos cabelos e na verdade todas as declarações de amor parecem-se com toalhas de uso comum nos banheiros da vida. As declarações de amor são feitas de palavras promíscuas.

O silêncio do quarto só era quebrado pelo barulho constante e contido do ar condicionado ligado na força máxima. Ele tinha muito calor e ela precisava de um friozinho na nuca toda vez que penteava os longos cabelos diante do espelho. Que bom que agora os dois estavam imersos no ritmo normal de seus batimentos cardíacos. É muito bom que após a aceleração vertiginosa provocada pela paixão a gente experimente pulsações mais moderadas.

Agora ela desfiava a ponta dos cabelos. Até com uma certa impaciência.

Chegou a fazer caretinhas de dor. As pontas de seu cabelos eram um problema. Como poderia vir a se tornar um problema a barriguinha que começava a incomodá-la, a ansiedade, sua miopia que avançava, seus dentes que escureciam por obra dos cigarros ou sua eterna indefinição diante dos homens. Para não pensar demais nisso tudo ela penteava os cabelos com prazer inigualável.

Deitado na cama, sentindo-se quase um pesqueiro barato ancorado no porto de Mar del Plata, ele via as costas dela e suspirava de felicidade. Podem sim os anos correrem depressa mas certas lembranças ficam para sempre como marquinhas de catapora na face. A mulher sentada diante do espelho penteando os cabelos é cena tão antiga que lembra fotos amareladas dos anos 20. E ao mesmo tempo é de uma atualidade acachapante.

Na cabeceira da cama estão os anéis dela. Muitos anéis. Cada um deles tem uma história. Ela poderia ficar horas dizendo os motivos pelos quais comprou cada um deles. Anéis na maioria caros. E também poderia ficar horas lamentando sua infância sofrida ou discursando sobre a mãe batalhadora, quase uma forma de compensar suas culpas diante desta mãe dominadora. Ela é fascinada pela psicanálise e crê que esta questionável atividade exercida por alguns bufões possa apontar a saída para os seus dilemas.

Mas ela continua diante do espelho penteando os cabelos. E quando faz isso não quer falar sobre nada. Sem saber é apenas a muda inspiração para este homem deitado na cama de cuecas que diante dos seus gestos tão nobres e do seu olhar magnifico certifica-se apenas  de que por mais que viva, por mais que erre e acerte, por mais que apanhe e releve, por mais que se magoe ou se puna jamais vai entender o que se passa no coração de uma mulher. Muito menos quando ela se cerca desta misteriosa solidão ao pentear os cabelos. Por isso, pelo medo de ficar só consigo mesmo, é que ele estava resolvido, mesmo tendo cabelos lisos e bonitos, que sempre haveria de tê-los muito curtos. Ou melhor, daquele dia em diante, estava certo de que seria um eterno careca.     

*Ricardo Soares é diretor de tv, escritor, roteirista e jornalista. Publicou 7 livros, dirigiu 12 documentários. Em breve publica a novela "Amor de mãe".

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