quarta-feira, 29 de março de 2017

Terceirização contraria o valor social do trabalho

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Os congressistas se fixaram unicamente no aspecto econômico, em detrimento das condições de trabalho e da dignidade humana.
A terceirização, por si só, produz discriminação e diminui os direitos dos trabalhadores
A terceirização, por si só, produz discriminação e diminui os direitos dos trabalhadores 
(André Gomes de Melo)

Por Thaís Cláudia D’Afonseca*

A tentativa de regulamentação da terceirização irrestrita no país não é recente. Diversos projetos de lei tramitam no Congresso sobre tal assunto. Mas em 22 de março de 2017 o Projeto de Lei 4302 foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mesmo sendo um projeto do ano de 1998 e votado no Senado em 2002, com texto pouco conhecido e debatido na comunidade jurídica e na sociedade civil, e adormecido há algum tempo no Congresso.

Anteriormente, outro projeto, o PL 4330, havia sido aprovado na Câmara e foi encaminhado ao Senado. Esse projeto de lei vinha sendo discutido e sofreu grande repúdio das centrais sindicais, juristas e juízes da área trabalhista. Tudo isso porque esse Projeto de Lei 4330 regulamentava a terceirização de modo irrestrito, o que gera, na concepção justrabalhista, precarização das condições de trabalho. Apesar da ofensiva contra a aprovação do PL 4330, a Câmara conseguiu, porém, ressuscitar um projeto antigo, no mesmo sentido, e aprová-lo em caráter de urgência.

A constitucionalidade da tramitação é questionável, mas não é o objeto da presente análise. Na verdade, apesar de ser ainda muito cedo para manifestar sobre as consequências jurídicas específicas, porque inclusive o projeto ainda está pendente de sanção presidencial, o fato é que regulamentar a terceirização de modo irrestrito traz consequências danosas que poderão ser notadas a curto prazo pela sociedade em geral.

A lógica de contratação de um empregado na legislação brasileira é da fórmula bilateral, havendo vínculo de emprego do trabalhador direto com seu empregador (o tomador dos serviços). O empregado possui direitos trabalhistas previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e ainda aqueles específicos da sua categoria. Por exemplo, um bancário recebe, além de seus direitos previstos na legislação, outros previstos na sua convenção coletiva.

Quando uma empresa utiliza mão de obra de um trabalhador terceirizado, no caso da terceirização geral (“permanente”), ela não está obrigada a remunerar o trabalhador nas mesmas condições que um empregado de seu quadro efetivo, conforme o texto aprovado, ou seja, o trabalhador terceirizado perde as garantias previstas nas convenções coletivas ou acordos aplicados aos empregados da referida empresa. Assim, a lógica da terceirização, para o trabalhador, é sempre tendente a diminuir direitos, pois não se garante a isonomia entre empregados e terceirizados.

O argumento das empresas é que com a terceirização é possível fixar todo o potencial no objetivo do empreendimento (área fim), contratando empregados apenas para aquilo que seja específico da sua finalidade e assim diminuir custos e aumentar a eficiência. O entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, na Súmula 331, já permitia a possibilidade de terceirizar, de modo permanente, por exemplo, vigilância, limpeza e atividades assessórias (da área meio). A nova lei, no entanto, se sancionada na maneira como está, possibilitará a terceirização de qualquer atividade da empresa tomadora dos serviços.

O projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados traz a seguinte redação para o artigo 4º-A, que passa a integrar a Lei 6.019/74: “a empresa prestadora de serviços a terceiros é a pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar a contratante serviços determinados e específicos.” Portanto, ao tratar especificamente da “prestação de serviços”, o texto legal fala de serviços “determinados” e “específicos”, sem autorizar expressamente, mas também sem proibir a prática de terceirização na atividade-fim, o que já está gerando interpretações divergentes. Evidentemente, diante da lacuna, seguindo os princípios do núcleo base do Direito do Trabalho, a melhor interpretação seria a restrição.

Fato é que o PL 4302 legaliza o que efetivamente destrói as conquistas individuais e coletivas dos trabalhadores: a permissão para que uma empresa contrate uma segunda, a fim de utilizar trabalhadores terceirizados sem as mesmas garantias e direitos a que estaria obrigada se esses fossem seus empregados.

Importante ressaltar também que o projeto estendeu o período do contrato de trabalho temporário, que antes poderia ser apenas de três meses, renováveis por mais três. Agora o contrato pode ser de 180 dias, podendo ser prorrogado por mais noventa. Além disso, ficou permitida a “quarteirização”, quando há a subcontratação por parte da empresa terceirizada e, ainda, outra previsão danosa ao empregado – a mera responsabilidade subsidiária do tomador de serviços.

Como já indicado, ainda é cedo para estabelecer maiores conclusões. Todavia, caso sancionada, a lei poderá ser questionada quanto à sua constitucionalidade, tanto no aspecto formal, quanto material, mas o fato é que até lá, diversos empregados podem vir a ser dispensados e substituídos por terceirizados com menores salários e garantias, e concursos públicos podem ser adiados para que terceirizados ocupem o lugar de servidores efetivos.

A terceirização, por si só, produz discriminação no ambiente de trabalho, diminui os direitos dos trabalhadores e fragmenta a atuação coletiva deste trabalhador, ainda mais se for concebida de modo indiscriminado como no texto aprovado. A busca pelo trabalho decente no país visa à superação da pobreza, à redução das desigualdades sociais, à garantia da governabilidade democrática e ao desenvolvimento sustentável. O Projeto de Lei 4302/98, em verdade, causa um profundo impacto social e afeta diretamente um princípio e fundamento da República Federativa do Brasil, o valor social do trabalho – artigo 1º, III, da Constituição Federal. Os congressistas se fixaram unicamente no aspecto econômico da questão da terceirização, em detrimento das condições de trabalho e da dignidade humana, o que contraria o que o próprio país se obrigou, por sua Constituição, e também perante à Organização Internacional do Trabalho.

Tecnicamente, este é um momento em que os interesses econômicos do empresariado se sobrepõem ao interesse social maior do trabalho, pois, economicamente, apesar da argumentação da classe econômica, a terceirização não gerará mais empregos, não trará mais segurança jurídica e muito menos elevará as condições sociais dos trabalhadores. Muito pelo contrário, a tendência é a precarização do trabalho, uma rotatividade extrema de mão de obra e, principalmente, a queda dos salários e direitos efetivamente pagos.

Os salários mais baixos pagos aos terceirizados e o desencargo da folha salarial são os grandes atrativos para que as empresas optem pela terceirização, afinal, o objetivo com esta prática é justamente a redução de custos. O projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados representa, sem dúvida, um grave retrocesso social.

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*Thaís Cláudia D’Afonseca é advogada, professora de Direito do Trabalho da Dom Helder Escola de Direito, mestre em Direito do Trabalho pelo PUC/MG, professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG (ESA/MG).

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