quinta-feira, 23 de março de 2017

O papa não mora mais aqui

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O papa não mora mais aqui. Permanece periférico, mesmo estando no centro. Trabalha com a Cúria, mas não faz parte dela. Permanece extraterritorial, incontrolável, indomável.
A lua de mel de Francisco com a Cúria Romana, já no início, estava destinada a durar um bater de asas
A lua de mel de Francisco com a Cúria Romana, já no início, estava destinada a durar um bater de asas (Reuters)
Por Andrea Grillo*

Quando Francisco apareceu na sacada de São Pedro, naquela noite do dia 13 de março de quatro anos atrás, e ao ouvir o seu primeiro discurso, tão forte e tão tocante, tão novo e tão antigo, parecíamos sonhar. Muitos elementos vinham se sobrepor e a dar forma real a um pressentimento, que cresceu durante décadas, embora ameaçado por obstáculos, por esquecimentos e por traições.

A lua de mel de Francisco com a Cúria Romana, já então, estava destinada a durar um bater de asas, mas a com o povo de Deus parece justamente se perpetuar sem fim. A Cúria – ao menos em parte – tinha registrado logo um gesto simbólico muito poderoso, percebendo-o como altamente ameaçador. Ela tinha entendido em um instante: o papa não mora mais aqui. Permanece periférico, mesmo estando no centro. Trabalha com a Cúria, mas não faz parte dela. Permanece extraterritorial, incontrolável, indomável. Presta serviço, mas permanece livre.

O povo de Deus, no entanto, logo degustou duas palavras-chave ou, melhor, três: pobreza e misericórdia, que já estavam escritas no nome escolhido pelo cardeal argentino, mas que se tornavam – inevitável e progressivamente – princípio de reforma da Igreja.

Elas tomam forma solene em alguns gestos simbólicos que marcaram época, desde o próprio dia em que foram feitas:

- o cuidado com todas as marginalidades, que se torna atenção radical ao outro, diante do qual é preciso “tirar as sandálias”, como sem-teto, migrante, refugiado ou encarcerado.

- a Igreja como hospital de campanha ou campo de refugiados deve “sair” e descobrir o outro fora de si; a heresia protestante e a hostilidade ateia relidas como fraternidade.

A partir daí, brota o duplo fronte de reforma, ad extra e ad intra:

- ad extra: uma Igreja que não deve “levar Deus onde ele não está”, mas que deve “reconhecê-lo onde ele já se encontra” muda a relação com a política, com as outras confissões e as outras fés. Procedendo a partir de uma nova compreensão da liberdade de consciência e a partir de uma nova relação com a cidade secular e aberta, ela se deixa surpreender pelo outro justamente por ser diferente, no plano civil, cristão, religioso. E só pode ensinar se estiver disponível para dialogar e para aprender.

- ad intra: a condição interna para o exercício dessa liberdade externa é de ser Igreja como povo a caminho. Isso exige um relançamento do discipulado que brilha, acima de tudo, em uma exigente reforma dos sacramentos do serviço (matrimônio e ordem). Aquela mudança que a Amoris laetitia introduz na pastoral familiar e que o início do debate sobre o diaconato feminino e sobre a ordenação de viri probati aprofunda, sem falar da surpresa com o “método sinodal” para se escolher o cardeal vigário, contra todas as previsões aparentemente já adquiridas...

No caminho do Concílio Vaticano II, o Papa Francisco não se esconde atrás de uma tradição paralisada por si mesma. Ele sai do sofrido e cômodo “non possumus” que tinha encantado e seduzido os seus antecessores. Ele reconhece à Igreja a autoridade de poder responder criativamente ao dom da graça. Com os seus gestos simples e cotidianos, restitui autoridade à tradição, traduzindo-a.

A Igreja redescobre que pode realmente perdoar e caminhar. Esse caminho e esse perdão, finalmente reconhecidos como possíveis, são, para poucos, um erro imperdoável; para muitos, a consolação preciosa que abre uma nova temporada.

Graças ao Vaticano II, o pressentimento de um papa possível tornou-se evento real. Agora, cabe à Igreja.


IHU/ Adista - Tradução: Moises Sbardelotto
*Andrea Grillo é professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.

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