sexta-feira, 31 de março de 2017

O Cristianismo e a defesa da liberdade

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Liberdade em Cristo é transcender limites impostos no campo da etnia, da cultura, das relações entre crenças divergentes, e ainda no campo da político.
Pátio do antigo DEOPS, São Paulo, utilizado durante a ditadura militar brasileira.
Pátio do antigo DEOPS, São Paulo, utilizado durante a ditadura 
militar brasileira. (Daniel Zanini H.)
Por Damião Fernandes dos Santos*

“É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1a)

Cristianismo e liberdade são dois conceitos que deveriam apresentar os mesmos significados. Essa epigrafe, que ilustra o início desse artigo, revela o anseio de cada homem e de cada mulher de todos os tempos. O tema da liberdade está intrinsicamente inserida na ação redentora e salvífica de Cristo. Portanto, o homem salvo por Cristo é justamente aquele que traz em sua existência um emaranhado de raízes de aprisionantes, de escravidões, em suma: o pecado. O problema da liberdade mostra-se um tema incisivo que permeia os diversos campos do re­lacionamento com Deus e as suas relações interpessoais. Pensar sobre esse tema contribui para uma discussão que mostra-se bastante relevante sobre grave questões existenciais do ser humano na atuali­dade, quando compreendemos que a liberdade em Cristo é transcender limites impostos no campo da etnia, da cultura, das relações entre crenças divergentes, e ainda no campo da político. Em Cristo, a liberdade tem a responsabilidade de ser elo e ser ponte entre os diferentes.  

 No imperativo paulino do “vós fostes chamados à liberdade” (Gálatas 5,13), percebemos aqui expresso, muito mais que uma simples constatação, mas sobretudo uma convocação, um chamado que ecoa no mais íntimo da alma de cada cristão. Na mensagem de São Paulo aos Gálatas, há uma indicação provocativa que nos remete ao estado criativo do homem que fora feito à “imagem e semelhança de Deus” (Gêneses 1,26). Neste anúncio, está revelada a identidade constitutiva do gênero humano, ou seja, ele é partícipe daquela liberdade que é própria do ato gerador de Deus, que por amor, é comunicada ao homem.   

Poderíamos afirmar, que no escopo da mensagem evangélica do Cristianismo, está o grave chamamento para uma existência onde a base fundamental desse existir no aqui e agora do hoje, nesse ‘instante’ da existência, está o devir para a liberdade. A existência consiste nessa constante e irresoluta tensão entre o que o ser humano é e o que ele ainda não é. Portanto, a existência é vivida no drama dessa liberdade que implica sempre a escolha. De acordo com o filósofo dinamarquês Kierkegaard, somente a fé cristã é capaz de conferir equilíbrio entre o que somos e o que buscamos ser. Somente a fé pode libertar o ser humano. Entre o pensamento paulino e o kierkegaardiano, assemelha-se a compreensão sobre a liberdade como a maior expressão da vida digna e plena que o ser humano é capaz de desejar e alcançar pela sua existência, pelas suas escolhas. Porém, somente em Paulo, a liberdade configura-se como uma das grandes bandeiras, historicamente empunhada pelo Cristianismo desde os tempo primitivos.   

A carta epistolar aos Gálatas, mostra-se como um exemplo claro, que desde a tradição da revelação bíbli­ca, a defesa da liberdade se revela ao mesmo tempo como chamado, vocação e missão. No “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gálatas 5,1), revela-se um caminho de ser e de fazer, de anunciar e de transformar a partir do Cristo que liberta.

O apóstolo Paulo, um dos maiores influentes escritores do cristianismo primitivo, que fora enviado aos gen­tios com a missão de pregar o Evangelho de Cristo, nes­ta Epístola aos Gálatas, de maneira cristalina, demonstra seu engajado discipulado num espírito de luta em prol da liberdade. Percebemos nesse embate, o Paulo aguerrido na luta contra os seus adversários e ao mesmo tempo em favor da causa de Cristo e de seus irmãos da comunidade dos Gálatas. Paulo, um homem que nunca mediu esforços na defesa da fé cristã. Nunca voltou atrás quando estava em jogo, fazer prevalecer a verdade do Evangelho proclamado por Cristo. Fora à comunidade dos Gálatas que direcionou uma das suas mais fortes exortações sobre esse aspecto: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou, a vós ante cujos os olhos foram delineados os traços de Jesus Cristo crucificado? Só isto quero saber de vós: foi pelas obras da lei que recebestes o Espirito ou pela adesão à fé?” (Gálatas 3, 1-2).

É inegável para toda a tradição cristã, a grande importância desta car­ta de São Paulo dirigida à comunidade dos Gálatas. É inquestionável do mesmo modo, o profundo significado, tanto para as bases da Igreja cristã primitiva, quanto para os cristãos deste tempo, essas interpelações paulinas, quando ele mesmo coloca numa perspectiva genuinamente li­bertadora toda a mensagem salvífica do Cristo e a introduz numa perspectiva também político-social a vivência dessa liberdade anunciada. Na mensagem do Cristianismo, todo indivíduo que sente-se livre, deve viver em vista da libertação do outro: “é para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gálatas 5,1),

A liberdade anunciada por Paulo e instaurada pela profecia do Cristianismo, revela-se numa mensagem que seja capaz de romper com todo e qualquer modelo de escravidão que por ventura esteja na base de toda hierarquia político-social ou cultural-religioso. A defesa da liberdade pelo Cristianismo é sobretudo pela preservação dos mais elevados valores humanos, portanto, dos valores morais universais. É pela preservação destes valores, em um primeiro momento circunscritos na comunidade dos Gálatas, mas que válidos para toda a comunidade humana. É possível perceber ainda, no texto paulino, uma grande preocupação com um legítimo processo de inculturação da mensagem salvífica do Evangelho de Cristo na vida histórica do povo. O Apóstolo das Nações sabia bem que todo processo de evangelização que não leva em consideração a cultura de um povo, como arquitetura base e ponto de partida para o início da semeadura, não passa na verdade de uma pura escravização do homem, sob o pretexto de vê-lo livre. Nesse sentido, temos a experiência de inculturação da mensagem do evangelho, na ação do Apóstolo ao entrar na cidade de Atenas. Quando ao percorrer toda a cidade e observando a existência dos monumentos sagrados, que eram parte integrante da crença e cultura do homem grego, afirma que “(...) encontrei até um altar com a inscrição: “Ao Deus desconhecido. Ora bem, o que adorais sem conhecer, isto venho eu anunciar-vos” (Atos 17,23).

Nessa perspectiva, em que trouxemos para análise a questão da defesa da li­berdade pelo Cristianismo, não tivemos nenhuma pretensão de esgotar as discussões sobre tal tema, mas sim de colaborar, propondo uma outra leitura, tendo como eixo central os textos epistolares paulino, em especifico aquela dirigida à comunidade dos Gálatas.  A liberdade cristã, constituindo-se em um chamado e ao mesmo tempo uma missão, torna-se aspecto identitário da mensagem salvífica, tanto do Cristianismo primitivo quanto do Cristianismo recente. Pois segundo Giavini, no livro Gálatas: Liberdade e lei na Igreja, “essa liberdade foi dada pelo Espírito à igreja para que a viva no interior de si mesma e no mundo, dentro da sociedade civil”.

Leia também:

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A Teologia da Libertação e a Ditadura Civil-militar no Brasil

Dom Paulo Arns: O Cardeal dos Direitos Humanos

*Damião Fernandes dos Santos é Professor Universitário, poeta, escritor, graduado em Filosofia, especialista em Filosofia da Educação (FAFIC), mestre e doutorando em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), autor do livro: COISAS COMUNS: o sagrado que abriga dentro - (Penalux, 2014).

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