domingo, 31 de julho de 2016

Mudanças

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Pais que assumem seu papel são muito mais do que amigos.
Nessa Babel familiar, quase sempre são fecundados os germes da violência social.
Nessa Babel familiar, quase sempre são fecundados os germes da violência social.

Por Evaldo D´Assumpção*
Em 1901, Machado de Assis, certamente desencantado com as transformações que já ocorriam na época natalina, concluiu seu Soneto de Natal com esta frase: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”

Sem pretensões machadianas, tomo seu questionamento para refletir sobre os dias atuais. Tempo em que medicamentos antidepressivos e tranquilizantes assumem os primeiros lugares nas estatísticas de venda das farmácias. Tempo em que as relações familiares se tornaram tão frágeis quanto o fio diligentemente tecido pela aranha que constrói a sua teia. Tempo em que as religiões, outrora voltadas para o culto e o louvor ao Criador, transformaram-se em justificativas e motivações para agressões, guerras e assassinatos com crueldade a cada dia mais requintada. Tempo em que as outrora puras relações afetivas, transformaram-se em meras oportunidades para o exercício do instinto sexual liberado na totalidade de suas possibilidades, e por isso mesmo cada vez mais insatisfatório. Tempo em que a palavra empenhada, o compromisso firmado e até o contrato assinado e gravado em cartório passaram a valer simplesmente nada. Tempo em que o sucesso passou a ser medido pelos milhões, e até bilhões, que são conseguidos em corrupção e maracutaias realizadas à luz do dia, e sem qualquer pudor.

Poderia prosseguir desfiando as transformações ocorridas nas últimas décadas, mesmo correndo o risco de ser taxado de retrógrado conservador ou de iludido desconhecedor de que nada mudou, apenas se tornou explícito pela diversidade midiática. Mas interrompo a ladainha para aprofundar, um pouco que seja, naquilo que meus setenta e oito anos de vida se horroriza constatar.

Refiro-me às relações familiares, nas quais o amor e o respeito pelos ancestrais tornou-se objeto de galhofa. Filhos já não pedem a benção de seus pais, tanto pelo desconhecimento total do profundo significado deste pedido, e do que dele se recebe, quanto pela mutação da relação pais-filhos, que mudou do patamar de respeito visceral, para a mera condição de “amizade”. E não foram os filhos que promoveram esta ruptura, mas os próprios pais, que por comodismo e ignorância de seu papel, seguiram hodiernos conceitos, intitulando-se, com a boca transbordante do modernismo que obturou seus cérebros, de “amigão” dos seus pimpolhos. Esqueceram-se do princípio imutável e indispensável que afirma ser pai e mãe, os pais, e filhos e filhas, os filhos. Condição muito bem definida e distinta, e muito, mas muito mesmo, acima de uma simples e quase sempre irresponsável relação amistosa. Amigos são preciosidades, não há como negar, contudo a paternidade envolve, infinitamente mais, o conceito de compromisso, de seriedade e sobretudo de formação e educação do filho. Amigos somente substituem os pais em qualidade, quando os pais delegam suas funções a terceiros, desertando covardemente do seu compromisso formador e educacional. Amigos fazem concessões, apoiam irregularidades, ajudam nas transgressões que num futuro, às vezes até bem próximo, poderão destruir, quase sempre, os dois parceiros. Pais que assumem seu papel, são muito mais do que amigos, e por isso mesmo jamais podem se equiparar ao companheirismo de pouco compromisso, não por maldade, mas quase sempre por imaturidade, por cega fidelidade ao senso de se ser amigo. Pais e filhos não caminham nem devem caminhar no mesmo passo, pois aqueles têm de estar sempre vários passos à frente destes, para mostrar-lhes as armadilhas que a vida arma na estrada de todos, especialmente dos mais jovens e imaturos.

E é por comportamentos distorcidos desta relação, que irmãos se tornam inimigos de irmãos, competições se instalam entre eles, muitas vezes com requintes de violência. Traições são perpetradas, e a família acaba se tornando apenas uma linda lembrança numa foto coletiva de tempos passados e ultrapassados, mofando num porta-retratos.

Nessa Babel familiar, quase sempre são fecundados os germes da violência social, da disputa sem regras ou limites que irão se projetar e ampliar nas atividades futuras, profissionais, empresariais, políticas e sociais. E caberá a pergunta que hoje já ressoa na mente e nos corações de muitos: “Onde foi que eu errei?”  Caberá uma segunda parte.

*Médico e escritor

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