sábado, 31 de outubro de 2015

Ninguém nasce homem

Simone de Beauvoir ainda assusta muita gente. “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” – sentença que parecia ponto pacífico por apregoar o papel fulcral da cultura na definição e formação daquilo que chamamos feminino – ainda não foi assimilado. De maneira estranha, as pessoas ainda buscam uma identidade única e sólida, como se isso fosse possível.

Identidade é uma relação de igualdade que se dá, em geral, por algum tipo de redução que despreza as diferenças. Por exemplo: Uma xícara e um prato de vidro podem ser identificados quanto à sua função. Um e outro, ignorando-se suas formas, são chamados louça. Entretanto, apesar de se prestarem à alimentação, um é habitualmente usado para líquidos e outro para sólidos, mas não necessariamente. Assim, se se considera os maiores detalhes de uso bem como a forma, pode-se dizer que há mais identidade entre um prato de vidro e outro de plástico que entre o primeiro e uma xícara. A coisa fica mais complicada se tomamos outros aspectos como a escala. O mesmo prato em escala menor é chamado pires e perde sua identidade de prato.

O que se quer dizer com isso? Que aquilo que chamamos identidade é a consideração de igualdade estabelecida pela cultura, entre coisas diferentes, a partir de determinado aspecto. Por isso identidade é um conceito relativo. Em sentido estrito, algo só pode ser idêntico a si mesmo. Mesmo assim há de se considerar que tudo está em movimento. Basta pensar na física de partículas e muito mais no ser humano que, como diz Heráclito, não passa duas vezes no mesmo rio. Este está em constante mutação e só se pode falar na sua identidade quando se compreende que ela não é algo fixo ou rígido. Diz respeito à sua capacidade de ser considerado o mesmo apesar de todas as suas mudanças. Para entender isso imaginemos uma banda que, ao longo de sua história e pouco-a-pouco, tenha mudado todos os seus membros. A banda seria a mesma? E se no início ela tocasse rock pesado e com o tempo fosse incluindo elementos pop e eletrônicos? A banda continuaria sendo a mesma? Ela teria perdido sua identidade? Quando? Onde esta estaria? No seu nome? Na sua história?

A briga atual sobre a determinação biológica sobre o sexo e a identidade poderia ser diminuída quando se toma outros elementos da vida cotidiana para cotejar tais embates. Lembro-me de alguns senhores dizendo em discussões com outros homens: “Você não é um homem. Você é um moleque. Honre o que tem entre as pernas”. Sem querer, apesar de seu machismo, estava implícito nas falas que não era o fato de ter um pênis que tornava alguém homem, mas que isso era um ideal adulto que considerava muito a responsabilidade e caráter como constitutivo daquilo que se entendia como masculino (e que não pertence somente ao homem). Honrar o que se possui entre as pernas dizia que a maturação sexual deveria coincidir com a maturação da personalidade, não o mero desenvolvimento do órgão sexual. Dizia que aquele que se apropria de sua sexualidade e genitalidade deveria também estar apto a responder por suas responsabilidades sociais. Dizia que não se nasce homem: torna-se homem.

Mineiramente

Eu não sou só isso ou aquilo. Você não é só isso ou aquilo. A identidade de cada um é múltipla e plural e se diz na relação que se estabelece com o mundo e a mutação na qual vivemos. Dentre os ramos nos quais ela se estende pode-se falar também das identidades regionais. Sabemos que “Minas são muitas” e que ser mineiro tem algo que fala do nosso jeito barroco, que alguns possuem mais ou menos. No barroco mineiro, cabe o paradoxo, a tensão, a justaposição de coisas, a bricolagem, a dobra. É fácil entender quando uma coisa é e não é ao mesmo tempo aqui em Minas. Descartes, Hegel, Aristóteles, Kant, Parmênides não poderiam ter nascido na terra das gerais. Tem muita paixão em um pão de queijo e nem a Serra da Mantiqueira pode separar nosso jeito de ver o mundo, esse lugar onde tudo é logo ali.

Neste sábado, o mineiríssimo grupo Ponto de Partida, da cidade de Barbacena, apresenta em Belo Horizonte o espetáculo Mineiramente.  A peça é embalada pela poesia de Drummond, textos de Guimarães Rosa e pela música de Milton Nascimento, Fernando Brant e Tavinho Moura, revelando os contornos da profunda, ritualística, desconfiada, bem humorada e musical Minas Gerais. Tudo se mistura à fachada do Palácio da Liberdade, pois, segundo o grupo, o espetáculo foi “concebido para se misturar às paisagens urbanas e atrair o olhar para as belezas de cada cidade”.

A entrada é gratuita, mas as senhas serão distribuídas a partir das 17h, no Centro de Informação ao Visitante (Prédio Verde), situado na Praça da Liberdade, no dia do espetáculo. A apresentação encerra a programação de lançamento do Inventário do Rio São Francisco, feito pelo IEPHA, que conta com a belíssima mostra "Alameda São Francisco: o rio inunda a cidade" criada por Alexandre Rousset e Tereza Bruzzi.

MINEIRAMENTE – BH: 31/10, sábado, às 20h, no Palácio da Liberdade.

Gilmar P. da Silva SJMestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com pesquisa em Signo e Significação nas Mídias, Cultura e Ambientes Midiáticos. Graduação em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Possui Graduação em Filosofia (Bacharelado e Licenciatura) pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Experiência na área de Filosofia, com ênfase na filosofia kierkegaardiana. 

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