terça-feira, 31 de outubro de 2017

A pastoral da Selfie

domtotal.com
Os acontecimentos da vida têm nos tornado pessoas cada dia mais indiferentes aos que estão a nossa volta.
Nossas comunidades de fé são convidadas a usufruir de tecnologias que ajudem na divulgação do Evangelho.
Nossas comunidades de fé são convidadas a usufruir de tecnologias que ajudem na divulgação do Evangelho.
Por Tânia da Silva Mayer

Estamos vivendo um tempo conflituoso, em que posições e tendências contrárias acabam por se congregar e se impulsionarem em determinas situações. Os acontecimentos da vida têm nos tornado pessoas cada dia mais indiferentes aos que estão a nossa volta. Fechamo-nos numa espécie de egoísmo narcisista e, por isso, altamente individualista. Característica que pode parecer contraditória, mas que demarca bem nossas relações, parte da tendência que temos em tornar públicos os acontecimentos de nossas vidas. Desse modo, embora estejamos trancafiados em nosso mundo confortável, agimos para que os outros, pelos quais nutrimos indiferença, vejam como vivemos e o que fazemos de nossos dias.

As redes e mídias sociais favorecem essa prática, já tão comum entre nós. Um click, e o que desejamos tornar público alcança centenas, milhares e milhões de pessoas em instantes. Entre conhecidos e desconhecidos, compartilhamos nossa vida. Aliás, compartilhamos apenas a seleção que fazemos. Em boa parte das vezes, apenas os momentos alegres, de sucesso, momentos em que nos sentimos realizados e de bem com a vida, é que são publicados. Os acontecimentos outros, nos quais fracassamos ou não somos bem sucedidos, são escondidos por nós. Estes nos envergonham e não arrecadam milhões de curtidas. Estamos rendidos à sociedade do espetáculo, não compreendendo que o que somos e a vida que temos não cabem em uma selfie.

A Igreja que formamos vive no mundo, compreendendo que sua meta é o Reino de Deus. O convite ao diálogo com a modernidade, impulsionado pelo Concílio Vaticano II, provocou a consciência da necessidade de encontrar métodos diferenciados e capazes de anunciar o Evangelho em nosso tempo. Uma percepção interessante é o uso dos meios de comunicação em massa na evangelização. Mas o que poderia fomentar a divulgação da fé além-fronteiras, pode também prejudicar o próprio anúncio do Evangelho e seu testemunho. Isso acontece quando nossas ações pastorais e evangelizadoras sucumbem à sociedade de consumo e do espetáculo. Quando a comunicação é encarada comercialmente e o marketing e a propaganda estão em vistas do lucro da fé e do status institucional.

Quando entramos no perigoso jogo da propaganda, furtamo-nos da realidade. Refugiamo-nos no mundo criado por nossas expectativas, um mundo de sucesso e sem tribulações. Se isso é um perigo para cada pessoa individualmente, tão maior o é para a comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus. Precisamente, o seguimento do Mestre se dá na exigente atenção aos sinais de nosso tempo, numa rigorosa leitura crítica dos acontecimentos de nossa história. Refugiados na propaganda única de nossos trabalhos bem sucedidos e de nossos momentos comunitários felizes e exitosos, negligenciamos as dificuldades e pelejas comunitárias, escondemos os insucessos da missão e maquiamos nossas ações pastorais e evangelizadoras, tão distantes de corresponderem ao status que delas publicamos.

No entanto, nosso artigo não pretende fazer apologia à idade da pedra, em que o uso das tecnologias não era bem quisto nos ambientes da fé. No entanto, compreendemos a importância de sempre avaliar nossos métodos, percebendo se eles contribuem para a missão de tornar a realidade em Reino de Deus ou se nos encerram nos esquemas de exposição e consumo, radicalmente contrários à Boa-Nova que Jesus inaugurou no meio do seu povo.

E por falar em Jesus, salvaguardando o caráter anacrônico de nossa leitura, suas obras e palavras cumpriram o que pretendiam: provocar e promover a vida, sobretudo dos pobres e excluídos. Empenhado na libertação humana das cadeias do pecado e da morte, não sucumbiu à pastoral da selfie, do marketing e da propaganda. Suas atitudes e sua fama se espalharam não porque estivesse empenhado em métodos sofisticados de comunicação ou no número de curtidas que receberia nas redes sociais, mas porque estava todo convertido para Deus e para o próximo, dedicando-se em tornar mais digna e plena a vida dos que com ele se encontravam. Aos apressados em propagar que ele era o Filho divino, Jesus asseverava que não contassem nada a ninguém, até que pudesse ser reconhecido e assumido por uma fé amadurecida e sensata. Nossas comunidades de fé são convidadas a usufruir de tecnologias que ajudem na divulgação do Evangelho, mas não podem jamais vir a cair na tentação de negligenciar a realidade em detrimento do sucesso momentâneo das redes sociais e dos artifícios da comunicação que pouco ou nada contribuem para uma vida boa e feliz.

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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