terça-feira, 19 de setembro de 2017

A Cultura da indiferença

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A cultura da indiferença é fortalecida toda vez que deixamos de acreditar que a realidade pode e deve ser diferente.
Reféns do espelho, desejamos eliminar o que não seja reflexo.
Reféns do espelho, desejamos eliminar o que não seja reflexo. (Divulgação/ Pixabay)
Por Tânia da Silva Mayer*

Tempos sombrios. Vivemos uma cultura da indiferença. Questões gerais, comuns a grande número de pessoas, não nos provocam e nem nos movem para além de nossos umbigos. Também os problemas dos outros não nos dizem respeito. E se há fome e sofrimento ao nosso redor, isso não nos inquieta. A maldade, a violência, as mortes, as perseguições e escravidões não nos afetam mais. E vivemos como se nada disso tivesse relação conosco. Não choramos mais as dores do mundo que construímos e ao qual pertencemos. E o caos que enfrentamos em nossa sociedade nos deixa sem horizontes e perspectivas de futuro. Sentindo que tudo vai muito mal, anestesiamos nossa sensibilidade e entramos num estado de apatia e indiferença para com o mundo, as coisas e as pessoas.

A indiferença é cruel. Ela edifica uma barreira instransponível entre nós e os outros. Tornamo-nos uma ilha sem vida e triste, negamos a condição criatural de sermos ao lado dos diferentes, nossos semelhantes. Em nós, a indiferença é sintoma de desumanização. E essa desumanização é tanto prejudicial a nós quanto às outras pessoas. Todo mundo perde. Aos poucos, nos recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que os diferentes são nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos fascistas, às práticas nazistas. Reféns do espelho, desejamos eliminar o que não seja reflexo. É quando a indiferença assume o controle das máquinas da morte, passando sobre os outros como um rolo compressor, como pau de arara e câmara de gás. Campo de concentração.

Nós, cristãs e cristãs, precisamos vigiar se não quisermos cair na tentação da indiferença. Costumeiramente, tendemos ao conformismo. E não raramente ouvimos um “Deus quis que fosse assim”. A cultura da indiferença é fortalecida toda vez que deixamos de acreditar que a realidade pode e deve ser diferente. Não podemos nos dar por vencidos acreditando que estamos no fim, que nossas forças já se esgotaram, que não há mais sentido para lutar. O mundo e a humanidade já passaram por crises tão grandes como essa que estamos passando. Banhados por tantas mortes e herdeiros e herdeiras de um passado de muitas atrocidades, também somos capazes de contar uma história de superação e reerguimento da humanidade. A própria história do cristianismo deve ser lida assim, como uma história na qual a vida obteve a vitória, não sem as profundas marcas e cicatrizes deixadas pela cultura da morte. Por isso, olhando para os acontecimentos que originaram a nossa fé, vislumbramos as luzes que iluminam nosso ser cristão em tempos sombrios.

A cruz é símbolo da indiferença que o mundo de maldades oferece às pessoas que se deixam afetar pela vida, pelo sofrimento e pela dor do outro. É assim que os sistemas opressores agem contra quem nada contra a correnteza. Por outro lado, a cruz de Jesus Cristo é sinal fecundo de que o ser humano não se rendeu à indiferença, de que é capaz de se compadecer, amar e entregar a própria vida pelos outros. Nela se desfaz o narcisismo, os discursos totalitários e o desejo de eliminação dos diferentes, porque ela é acontecimento de abertura, doação e entrega. Diante da cruz e de outras tragédias é possível cultivar o conformismo que desiste e diz: “é vontade de Deus”. Mas, em direção contrária, podemos experimentar a dor, passar pelo luto e assimilar, apesar da tristeza, os fatos que nos conduziram até ali. É preciso viver a dor; superar o luto; fazer memória.

A história fundacional da fé cristã ensina isso. E a vida de Jesus só chegou até nós graças à superação de uma comunidade destroçada pela morte, pelo medo e pela indiferença do mundo. Também hoje precisamos superar as tentações da cultura e das religiosidades, que tendem a nos fazer acreditar que tudo está perdido e que nada mais pode ser feito. Nós somos portadores de uma palavra contrária: outro mundo é possível. É possível superar os tempos sombrios que estamos vivendo, se não sucumbirmos à indiferença; se ainda formos capazes de nos indignar, compadecer e afetar uns pelos outros. Que a guerra, a dor, a injustiça, a morte, a fome, a mentira, o futuro não nos seja indiferente.

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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