terça-feira, 8 de agosto de 2017

Roma antiga tratava com rigor infidelidade, mas só da mulher

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No Brasil, por exemplo, somente em 2005 o chamado crime de adultério, foi revogado.
Figura da mulher adúltera era uma contradição que deveria ser eliminada pela morte ou transformação em prostituta
Figura da mulher adúltera era uma contradição que deveria ser eliminada pela morte ou transformação em prostituta (Reprodução).

Defendida em julho na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, uma tese de doutorado realizou um extenso estudo sobre as práticas e as concepções do adultério entre a aristocracia romana, durante o período da dinastia Júlio-Cláudia, entre os anos 27 a.C. e 68 d.C.

Para a historiadora Sarah Fernandes Lino de Azevedo, o que começou como uma investigação fechada sobre um passado distante se provou um instrumento iluminador para entender o comportamento de uma sociedade presente que se considera moderna.

Investigando as concepções de adultério registradas na chamada Lex Iulia de adulteriis (Lei Júlia sobre adultério), Sarah procurou mapear o papel daqueles considerados adúlteros diante da lei romana e, em especial, pontuar as diferenças de tratamento entre gêneros naquela sociedade.

Promulgada por Augusto, em 18 a.C., a lei definia o adultério como uma relação sexual entre uma mulher casada e um homem que não era seu marido. Ambos eram incriminados, a esposa adúltera e o homem que cometia a ofensa contra o marido dela. “Se condenados, a lei previa que fossem relegados para ilhas diferentes, parte de seus bens era confiscada – ao homem, metade de sua propriedade; à mulher, metade de seu dote e um terço de seu patrimônio”, explica a pesquisadora durante a tese.

A lei era parte de uma reforma de cunho moral e com fins políticos iniciada por Augusto, após pôr fim às guerras civis (31 a.C.), cuja intenção principal era reestruturar a política romana, legitimar uma nova forma de governo baseada em ideais dinásticos, e,consequentemente, efetivar a transição do regime republicano para o imperial. “Nota-se também que o alvo principal da lei eram as mulheres”, pontua a historiadora.

Resgatando diversas fontes primárias, Sarah iniciou sua viagem no tempo utilizando uma combinação de documentações literárias e jurídicas. “A documentação literária possui muitas traduções para o inglês e para o francês, e em alguns casos para o português”, lembra ao refazer seu caminho metodológico. Ela destaca também que a documentação jurídica, por sua vez, não contava com tantas versões. “Tem pouquíssima documentação traduzida do Digesto, uma compilação de leis do século 6 e o principal documento que temos para estudar leis romanas”, revela.

Ao fazer a reunião dos documentos, Sarah procurou buscar definições essenciais sobre como era a concepção de adultério na lei e, em profundidade, como os romanos o percebiam. “Procurei dar ênfase para uma abordagem de gêneros e entender a figura dos adúlteros como um símbolo de desordem na sociedade”, elabora ela.

De acordo com a pesquisadora, a noção do adultério em Roma é uma concepção patriarcal, que estava registrada na legislação e restringia o campo de opções sexuais da mulher.

Por vezes, a historiadora enxergou o que chamou de “duplicidade” com a qual os romanos puniam o adultério e, ao mesmo tempo, o toleravam. “Vemos pelos documentos que existia uma cultura da moralidade e da imoralidade, enviesada por um ponto de vista masculino e aristocrático”, explica.

Contando com poucos documentos escritos por mulheres, Sarah compreendeu, no decorrer da tese, que suas fontes seriam limitadas aos relatos das figuras dominantes – quem de fato, fazia e ditava as leis.

Presença feminina na política

Não por acaso, sua investigação a levou a tentar compreender o papel das mulheres no panorama geral que, às margens das grandes decisões políticas, eram temidas por sua influência sobre senadores e até mesmo imperadores.

Anteriormente, durante seu mestrado, Sarah teve como foco uma série de personagens femininas que habitavam os Annales (“Anais”) de Tácito, notório historiador, orador e político romano. Concentrando-se no império de Nero, um dos mais famosos tiranos da Roma antiga, a pesquisadora procurou enxergar como “as mulheres dessa narrativa podem ser vistas e consideradas um recurso retórico que contribui para uma má imagem de Nero”, esclarece.

“Tácito faz uma crítica enquanto narra sobre essas personagens – mulheres da aristocracia, esposas de senadores, imperadores -, sobre sua interferência na política no início do Império Romano”, conta ela ao salientar que a chamada interferência era, ao mesmo tempo, legítima, mas também vista por alguns senadores como abusiva. “Elas foram retratadas muitas vezes como mulheres que tinham um comportamento sexual desviante, mulheres adúlteras”, revela ela.

Foi estudando o papel de Agripina, a mãe de Nero, que muitas vezes é colocada como uma mulher desviante, que Sarah compreendeu que as mesmas barreiras que ela rompeu ao interferir na política de seu tempo, ela também rompeu no âmbito do comportamento sexual. E esse se tornou o alvo dos legisladores na tentativa de controlar a influência feminina na política local.

Expurgação das mulheres vestais

Num território às margens da aristocracia, a historiadora se deparou com outras figuras femininas que tomaram grande importância tanto para a compreensão das leis que puniam as mulheres com comportamento sexual considerado condenável, quanto para salvaguardar a manutenção do próprio Estado romano.

As chamadas “virgens vestais” eram sacerdotisas responsáveis pelos cuidados do templo dedicado à deusa Vesta, a deusa dos lares, que garantia a paz na Roma antiga. “As vestais ficavam num templo do lado do fórum e eram responsáveis por manter o fogo aceso por meio de rituais que garantiam a segurança da cidade”, conta Sarah.

Sua principal fonte de “poder” era instaurada por meio de voto de castidade, que deveria durar 30 anos. “Se elas perdessem a virgindade e fossem julgadas culpadas, elas eram enterradas vivas”, revela.

“Essas mulheres eram consideradas um totem da cidade de Roma, e na medida em que seu corpo era inviolável, ou deveria ser, entendia-se que se esse corpo era violado, a cidade poderia estar em perigo. Elas eram uma das formas de expiação da culpa”, conclui Sarah pontuando que, ao investigar esses atos, passou a compreender como as mulheres cujo comportamento sexual não era aprovado precisavam ser expurgadas de Roma.

Para ela, o modelo de morte dessas virgens vestais pode ser visto como um paradigma da morte de adúlteras. “Do mesmo modo que a mulher que rompeu com seu pacto de castidade e se deixou ser violada, ela tinha quer ser eliminada, a adúltera também tinha que ser eliminada, expurgada da sociedade”, explica.

Para os romanos existiam dois modos de eliminar essa figura da adúltera: pela morte, prevista pela lei com certas condições, como o fato de somente o pai poder matar a filha, ou pela transformação da mulher adúltera em prostituta. A mulher condenada como adúltera não podia casar novamente com um homem livre e mudava de estatuto jurídico. “Ela passava para a categoria jurídica dos infames, que era a categoria jurídica das prostitutas”, aponta ela.

Conforme a historiadora, na sociedade romana, a figura da adúltera era uma contradição que deveria ser eliminada. A lei previa apenas duas categorias para as mulheres da época: a da matrona – mulheres castas, exaltadas como esposas perfeitas dos senadores, que os acompanhavam e davam apoio, mas que não interferiam na política – e a da prostituta. “A adúltera não existia perante a lei. Ela era uma figura transitória que precisava ser eliminada.”

Enquanto isso, no Brasil

Resquícios vestigiais de outras épocas ainda permanecem atrelados às instituições que nos governam. No Brasil, por exemplo, somente em 2005 o chamado crime de adultério, previsto até então no artigo 240 do Código Penal, foi revogado.

A peça de legislação arcana tinha como objeto ser um instrumento punitivo que “protegia as instituições do casamento e da família” perante a lei. Uma vez reconhecido que ambas possuíam outras formas de proteção no ordenamento jurídico, em especial no Código Civil, a instância penal foi descartada.

Ainda assim, o adultério continua a ser usado como argumento para a violência constante sofrida por mulheres no País. De acordo com uma pesquisa feita pelo Datafolha e encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança, divulgada no primeiro semestre de 2017, uma em cada três mulheres sofreu algum tipo de violência no último ano. Só de agressões físicas, o número é alarmante: 503 mulheres brasileiras vítimas a cada hora.

Outra pesquisa, citada na tese, realizada pela Fundação Perseu Abramo (FPA), nos anos de 2001 e 2010, revelou que 31% (2001) e 35% (2010) dentre as mulheres que declararam já ter tido relações fora do casamento/namoro afirmaram que o motivo principal foi “por vingança/ porque o marido/namorado tinha amantes/para provocar ciúmes/ porque brigaram”. A mesma pesquisa revelou também que 40% dos homens que já bateram em mulheres afirmaram que o fizeram com objetivo de “controlar a fidelidade”.

Tal como na Roma de 2 mil anos atrás, no Brasil do século 21 “a infidelidade feminina vem justificar a violência masculina”, aponta Sarah. “A letra da lei trata os gêneros em igualdade, mas isso não é o que a gente vê com os números de violência contra a mulher”, argumenta.

Ao concluir a tese, Sarah se descobriu surpreendida com a quantidade de paralelos que enxergou ao analisar o ciclo de violência gerado pelo adultério ainda hoje.“É assustador um patriarcado instituído ter semelhanças com a nossa sociedade, que se diz tão aberta e avançada.”


Denis Pacheco/Jornal da USP

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