quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Nossa história não começa em 1988. Contra teses racistas

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Índios que foram obrigados a deixar suas terras e não puderam retornar até 1988 não poderão mais reivindicá-las.
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O "marco temporal" será o golpe mais contundente contra os direitos territoriais indígenas desde a ditadura militar. (Renato Santana/ Cimi)
Por Élio Gasda*

No momento de graves retrocessos nos direitos sociais, os povos indígenas podem ser a bola vez. Projetos que envolvem o processo de demarcação de terras indígenas sempre acirram os ânimos. A Bancada Ruralista, reforçada pelo governo ilegítimo, insiste em propor emendas que enfraquecem direitos destes povos. Entre as mudanças, está a adoção do “marco temporal” – apenas aqueles que estavam em suas terras ancestrais ou no processo de disputa judicial até 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, poderão ter direito a ela. Índios que foram obrigados a deixar suas terras e não puderam retornar até a data estipulada não poderão mais reivindicá-las.

O “marco temporal” será o golpe mais contundente contra os direitos territoriais indígenas desde a ditadura militar. Legitima violações cometidas contra estes povos até o dia 04 de outubro de 1988: confinamento em reservas diminutas, remoções forçadas em massa, tortura, assassinatos, prisões. Ao anistiar tais crimes, o projeto insinua que a grilagem, a expulsão e o extermínio de indígenas são apoiados pelo Estado. O “marco temporal” dá a possibilidade dos ruralistas invadirem as terras já demarcadas. Os direitos dos povos indígenas retrocederão ao tempo do Brasil Colônia, quando os bandeirantes tinham carta branca. Será um novo genocídio.

O “marco temporal” voltou à discussão porque o STF está julgando três Ações Civis Originárias (ACOs) referentes à demarcação de terras indígenas. As decisões de dois ministros sobre as ACOs envolvendo o Parque Indígena do Xingu (MT), a Terra Indígena Ventarra (RS) e dos povos Nambikwara e Pareci (RO) poderão gerar consequências para o futuro destes povos em todo o país.

A Constituição reconhece o direito dos povos indígenas de viverem no território de seus ancestrais. As demarcações estão previstas no art. 231 da Constituição Federal. Não foram inventadas pela FUNAI ou alguma ONG. Terras indígenas demarcadas são patrimônio da União, cabendo a eles seu usufruto exclusivo. As terras somente podem ser exploradas pela União em caso de relevante interesse, após as comunidades indígenas terem sido consultadas e mediante autorização do Congresso Nacional.

Na semana do dia Internacional dos Povos Indígenas (9/8), Temer foi denunciado na ONU pelo aumento das violações dos direitos humanos dos povos indígenas. Temer utiliza os direitos indígenas como moeda de troca para se sustentar no poder. O ataque aos direitos constitucionais compõe sua estratégia para se livrar das acusações de corrupção. Recentemente, assinou um parecer da Advocacia Geral da União determinando aos órgãos do Executivo a adoção das condicionantes do caso Raposa Serra do Sol em todos os processos envolvendo terras indígenas. A tentativa de desqualificar esta demarcação (2009) tem como objetivo inviabilizar todas as demarcações. O Ataque é patrocinado pelas corporações empresariais, de capital nacional e internacional, e posto em prática por representantes do ruralismo nos diferentes Poderes do Estado brasileiro. A Bancada Ruralista cumpriu sua parte do acordo ao livrar Temer que, por sua vez, reeditou medidas contra os índios. Podres poderes. Inimigos dos povos indígenas, não reconhecem seus direitos.

Na última reunião do Conselho Permanente da CNBB, em junho, os bispos reafirmavam o compromisso: “O serviço pastoral à vida plena dos povos indígenas exige que anunciemos Jesus Cristo e a Boa Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas’ (Doc. de Aparecida, 95) que ameaçam os primeiros habitantes desta Terra de Santa Cruz”. Também a Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Social Transformadora da CNBB reuniu as pastorais sociais em agosto e fez pronunciamento manifestando solidariedade aos Indígenas e Quilombolas.

Papa Francisco é grande defensor dos direitos dos povos injustiçados ao redor do mundo. Para ele os povos indígenas têm o direito ao “consentimento prévio e informado quando atividades econômicas interferem com as culturas indígenas e sua relação ancestral com a terra”. Em outras palavras, nada deveria acontecer nas suas terras a menos que concordem (Discurso no 3º Fórum dos Povos Indígenas).

A Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Organização de Estados Americanos (OEA) no artigo 32 decreta: “é dever do Estado consultar e cooperar de boa-fé com os povos indígenas interessados, por meio de suas instituições representativas, a fim de obter seu consentimento livre, prévio e informado antes de adotar e aplicar medidas legislativas e administrativas que os afetem”. Esta Declaração, instrumento fundamental do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, é imprescindível quando os indígenas brasileiros têm seus direitos ameaçados.

Mesmo diante das pressões do agronegócio e do (des)governo, que o Judiciário se paute pela manutenção das garantias estabelecidas pela Constituição Federal de 1988. Os povos indígenas querem apenas que suas terras ancestrais sejam demarcadas seguindo os critérios de tradicionalidade garantidos na Constituição. O “marco temporal” é um argumento racista para legitimar o genocídio indígena. “Nossa história não começa em 1988”! (Lema da campanha do movimento indígena contra o marco temporal).

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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