terça-feira, 1 de agosto de 2017

Da novela à vida, provocações à fé

domtotal.com
Qualquer atitude preconceituosa e que tenda ao não conhecimento e enfrentamento da questão trans vai contrariamente à mensagem cristã do Reino de vida plena.
Que a novela ajude a teologia e a pastoral a se importarem mais com os marginalizados de hoje.
Que a novela ajude a teologia e a pastoral a se importarem mais com os 
marginalizados de hoje. (Reprodução/ Leand Bobbe)
Tânia da Silva Mayer*

A cada semana, Glória Perez surpreende os espectadores com a história da personagem Ivana, da novela A Força do Querer, exibida às 21h, pela Rede Globo. Interpretada por Carol Duarte, Ivana vive o drama de possuir uma identidade de gênero não compatível com o sexo com o qual nasceu e com o desempenho do papel feminino esperado pela mãe, o namorado e outros amigos e familiares que compõem a trama. Ivana é um homem transexual, e embora seja de uma família da classe média brasileira, onde se pressupõe certas facilidades no acesso das informações, ele nunca conheceu nenhuma pessoa transexual e também desconhece o que seja a transexualidade. Isso espanta, mas também revela algo do sermos brasileiros em nosso tempo: as realidades transexuais ainda são invisibilizadas em nossa sociedade. Nosso desconhecimento e nossos preconceitos impedem-nos de avançarmos no acolhimento e proteção dessas pessoas que se encontram numa margem de risco social bastante elevada.

A autora da Novela, como o fez de outras vezes, assume com responsabilidade a abordagem de um tema delicadíssimo, a transexualidade, rompendo com estereótipos que esclarecem muito pouco e estigmatizam demasiadamente, ao favorecerem uma leitura engessada da realidade. Por causa de uma construção sensível e séria, é possível acompanhar o sofrimento e a angústia da personagem, ao se perceber cada vez mais incompatível com o próprio corpo de fêmea e com o que esperam dela no âmbito do feminino. As cenas fortes, muitas vezes silenciosas, vão esclarecendo a um público desconhecedor da transexualidade os sentimentos experimentados por muitas pessoas trans. Também as pelejas cotidianas e as violências das ruas, tal como enfrenta Nonato, outro personagem trans de A Força do Querer, interpretado pelo ator Silvero Pereira, mostram que, para além da violência psicológica, fomentada por nosso sistema heteronormatizador, a transfobia se reflete no precário acesso à escolarização e aos postos de trabalho, na baixa renda e marginalização social e na violência que espanca até a morte dezenas de transexuais no Brasil.

Se nas novelas de Glória Perez a arte é veículo que tende a nos aproximar de algum detalhe da realidade, a transexualidade é uma ferida aberta, com a qual nossos sistemas sociais e religiosos ainda não estão preparados para dialogar. A problematização do corpo, entendido num sentido primeiro, como corpo biológico, consequência do nascimento, realizado pelas vivências transexuais, provocam uma teologia confessada cristã no seu âmago: se eu sou o meu corpo, como não estar em casa nele? Como ele pode ser acontecimento de perdição e sofrimento e não de salvação e alegria? A resposta destas e de outras questões exige a escuta solidária das pessoas que se encontram na encruzilhada do eu e do corpo. Distante desta audição, a teologia continuará impedida de compreender e dar razão da esperança numa linguagem que comunique entre as muitas realidades e sexualidades humanas.

Basta o amor de Jesus Cristo para convencer os cristãos e as cristãs, confrontados em sua fé por essas realidades que vão se tornando conhecidas através da arte televisiva, de que qualquer atitude preconceituosa e que tenda ao não conhecimento e enfrentamento da questão vão contrariamente à mensagem cristã do Reino de vida plena para todos e todas. Feliz é uma fé como a de Pedro, que estando na casa do gentio Cornélio e da família deste, considerados impuros por serem estrangeiros, foi capaz de afirmar que “Deus não faz discriminação entre as pessoas”, e que Ele acolhe a quem o teme e pratica a sua justiça (At 10,34-35). Que a novela ajude a teologia e a pastoral a se importarem mais com os marginalizados de hoje, com as pessoas que transportam em seus ombros a cruz da discriminação, pelos becos e ruas das nossas cidades, completando em seus corpos os sofrimentos e mortes que Deus não deseja para todos os seus filhos e filhas.

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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