quinta-feira, 13 de julho de 2017

O que alguns defensores da vida negligenciaram no caso de Charlie Gard

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Observadores parecem ter aplicado mal o ensino da igreja em sua análise ética do caso de Charlie Gard e podem ter caído na armadilha do vitalismo.
Médicos não são obrigados a oferecer tratamentos que não tenham chances razoáveis de sucesso ou em que os danos até agora excedam os benefícios potenciais.
Médicos não são obrigados a oferecer tratamentos que não tenham chances razoáveis de sucesso ou em que os danos até agora excedam os benefícios potenciais. (CNS).
Por Michael Redinger*

O caso de Charlie Gard, de 15 meses, é extremamente trágico. O argumento dos pais de Gard para manter seu apoio à vida e levá-lo aos Estados Unidos para receber um tratamento médico experimental foi rejeitado na semana passada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (E.C.H.R). O caso provocou os ativistas em pró-vida e alguns jornalistas que veem a decisão do tribunal como um triunfo da cultura da morte, da indiferença burocrática e judicial e do racionamento despreocupado de cuidados de saúde. Porém, apesar de suas boas intenções, muitos observadores parecem ter aplicado mal o ensino da igreja em sua análise ética do caso de Charlie Gard e podem ter caído na armadilha do vitalismo: a priorização do prolongamento da vida humana a todo custo, independentemente da dor ou do sofrimento.

Independentemente de você achar ou não que os tribunais tenham o direito de tomar essa decisão, a aplicação correta do raciocínio moral católico pode ser considerado como sendo, em última análise, a decisão final da E.C.H.R. de negar o apoio à vida.

No meu trabalho como consultor de ética e consultor em ética clínica, muitas vezes sou convidado para ajudar a identificar a solução eticamente correta quando as pessoas refletem na morte. Na minha profissão, costuma-se dizer que os bons fatos médicos precedem a boa ética. Aqui estão os fatos do caso da família Gard.

Charlie Gard sofre de uma doença mitocondrial que provocou danos cerebrais, convulsões frequentes, perda muscular progressiva e insuficiência respiratória (perda da capacidade de respirar de forma independente), necessitando de ventilação mecânica para sua sobrevivência. Junto a isto, há também um consenso geral de que a vida neste estado é dolorosa para Charlie e que ele é incapaz de compreender ou responder de forma significativa a essa dor. Finalmente, os pais e defensores de Charlie afirmam que existe um possível tratamento disponível nos Estados Unidos que pode melhorar sua condição irreversível e terminal.

Levando esses fatos em consideração, o ensino da Igreja pode então ser aplicado ao caso de Charlie Gard. Na sua encíclica "Evangelium Vitae", o Papa João Paulo II afirma que os tratamentos médicos podem ser classificados como ordinários ou extraordinários. Os tratamentos comuns são aqueles que, aos olhos do paciente ou seu substituto (quem pode tomar qualquer decisão em caso grave), os benefícios esperados superam os riscos antecipados e geralmente são considerados moralmente obrigatórios. Os tratamentos extraordinários são aqueles em que, aos olhos do paciente ou seu substituto, é incerto se os benefícios superam os riscos e os sofrimentos ou os riscos e cargas superam os benefícios. Esses tratamentos são considerados moralmente opcionais.

Em situações graves no final da vida, os eticistas católicos reconhecem que a maioria dos tratamentos são considerados extraordinários. Os pacientes e seus substitutos podem, muitas vezes, optar por não buscar mais quimioterapia tóxica ou ressuscitação cardiopulmonar dolorosa quando vão se aproximando da morte.

A sociedade muitas vezes concede ampla liberdade aos pais que fazem escolhas no melhor interesse dos seus filhos, pedindo-lhes que ponderem tratamentos potenciais e metas de atendimento com base na percepção da qualidade de vida dos seus filhos. Por respeito à autonomia do paciente, os médicos geralmente seguem as escolhas informadas de seus pacientes ou seus substitutos, mesmo que não façam a mesma escolha para si ou para os seus entes queridos.

Até este ponto, os leitores podem razoavelmente concluir que, se a ventilação mecânica de Charlie ajuda a mantê-lo para que ele experimente uma qualidade de vida aceitável aos olhos de seus pais ou se seu sofrimento é tolerável temporariamente até que ele possa acessar a um tratamento experimental que ofereça um benéfico potencial, então o desejo de seus pais de mantê-lo vivo deve ser respeitado.

Há, no entanto, tratamentos médicos que se enquadram fora das estruturas comuns e extraordinárias. Uma categoria inclui aqueles tratamentos que são chamados de fúteis ou, mais precisamente, "não benéficos", e tem sido um foco crescente da ética médica secular e católica. Os médicos não são obrigados a oferecer tratamentos que, na sua perícia médica, não tenham chances razoáveis ​​de sucesso ou em que os danos excedam os benefícios potenciais ou que se tornam desumanos. Fazer isso viola a máxima antiga que diz "primeiro, não faça mal".

O enquadramento em torno do tratamento não benéfico parece ter guiado adequadamente o raciocínio do Tribunal Superior britânico na sua decisão do caso antes de dirigir uma apelação à E.C.H.R. O Tribunal Superior britânico consultou minuciosamente os especialistas na Grã-Bretanha e na Espanha, bem como o médico que oferece o possível tratamento nos Estados Unidos. Era claro que o tratamento nunca tinha sido experimentado em um paciente com o defeito mitocondrial específico que Charlie Gard tinha. Não havia perspectivas de que isso melhorasse o dano estrutural subjacente que já ocorreu em seu cérebro e não havia evidência clara de que a terapia seria capaz de superar a barreira hemato-encefálica. Além disso, o tratamento experimental expõe o Charlie a riscos potencialmente inesperados que são impossíveis de quantificar.

Depois de colaborar com a equipe de tratamento na Grã-Bretanha, o médico nos Estados Unidos que concordou em tratar Charlie reconheceu a chance remota de qualquer benefício. O tribunal observou que a capacidade de pagamento não estava em questão, já que a família arrecadou fundos suficientes de doadores generosos para pagar os custos relacionados. Em vez disso, o que guiou a decisão do tribunal foi apenas uma consideração para o melhor interesse de Charlie.

A Conferência Episcopal para a Inglaterra e o País de Gales, a Pontifícia Academia para a Vida e o Papa Francisco não contradizem a decisão da E.C.H.R de negar a prolongação da vida de Charlie recebendo o Tratamento experimental. Ao expressar simpatia e apoio orante para a família Gard, suas declarações públicas reconheceram que às vezes a medicina é impotente para curar doenças terminais. Nenhum desses líderes da igreja insistiu em continuar com o apoio da vida artificial a todo custo, nem argumentou contra o papel apropriado do Estado para proteger os melhores interesses das crianças ou para resolver disputas entre pacientes, suas famílias e seus médicos.

O caso trágico De Charlie Gard é aquele em que alguns membros bem intencionados da comunidade em pró-vida se lançaram irreflexivamente para a defesa da família Gard. Ao fazê-lo, infelizmente não conseguiram reconhecer as nuances do ensino católico sobre os cuidados no fim da vida. Quando a vida é valorizada tão altamente em relação a outros bens, sua busca se torna prejudicial. Com efeito, a própria vida se torna um ídolo.


America
*Michael Redinger é um psiquiatra e eticista clínico na Universidade de Michigan Western Homer Stryker MD School of Medicine, onde é co-responsável do programa em ética médica, humanidades e direito.

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