sexta-feira, 2 de junho de 2017

O vento sopra onde quer

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A espiritualidade percebe a presença do Espírito no humano e na criação com o seu poder recriador.
Como vento impetuoso, o Espírito desestrutura a ordem estabelecida e concede a novidade
Como vento impetuoso, o Espírito desestrutura a ordem estabelecida e concede a novidade (Divulgação)
Carlos Cunha*

"O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito" (Jo 3,8), afirma a tradição joanina. O pequeno versículo aponta para duas direções. Primeira, a ação livre e libertadora do Espírito para além das nossas limitações. Como vento impetuoso, o Espírito desestrutura a ordem estabelecida e concede a novidade. Segunda, biblicamente, o poder do Espírito está relacionado à capacitação de sujeitos e grupos empenhados em projetos de libertação, transformação, salvação/humanização. A vida cristã implica num novo nascimento.

A tradição joanina reconhece a unção de Deus por meio de Jesus Cristo no poder do Espírito, quando faz do sopro do Cristo ressurreto o comissionamento para o envio dos discípulos: “Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E, havendo dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes: recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22). O Espírito Santo remete Àquilo que produz vida, que está presente em tudo. A espiritualidade percebe a presença do Espírito no humano e na criação com o seu poder recriador. Ela guarda uma mística dos olhos abertos e das mãos operosas, consciente em relação ao sofrimento alheio. A sobrevivência da mística cristã nos tempos atuais está atrelada a um comportamento humanizador no relacionamento de valorização do outro, testificando o amor a Deus. Caso contrário, a “mística dos olhos fechados” ao humano e a criação seria puro modismo vazio e passageiro.

Será que a cultura contemporânea oferece um lugar para esse tipo de espiritualidade? Há quem diga que não, isto é, não há lugar na cultura tecnicista de hoje para uma espiritualidade como base para o aprofundamento da fé. Há outros que acreditam em uma espiritualidade leiga, sem deuses, sem crenças e sem religião como a única capaz de dizer algo aos seres humanos atuais. O sujeito não precisa de fé religiosa para aderir a ela. Existem também aqueles que apostam no momento atual como oportunidade única para o desenvolvimento de uma teologia criativa, capaz de reatualizar as suas categorias, à luz de um novo paradigma, numa teologia da espiritualidade. Ou conforme Karl Rahner: “O cristão do futuro ou será místico ou não será cristão”. 

O certo é que o mundo tem uma marca de “trans-espiritualidade”, ou seja, espiritualidade entre, através e além da nossa capacidade de apreensão e com infinitas possibilidades. O conhecimento místico ou espiritual, típico do saber originário da fé, é um saber experiencial. Ele não separa a realidade de Deus da realidade humana no labor de uma teologia da espiritualidade. É um risco para a intelecção da fé se perder nos meandros de uma multidão de detalhes e obscurecer a percepção do que é realmente essencial. Há o perigo na caminhada teológica de trocar a fé sincera pelo intelectualismo. A teologia pode se tornar um ídolo quando deixamos de utilizá-la como meio para compreender o divino e o humano e caímos na idolatria das ideias, dos conceitos e dos sistemas. As consequências desta idolatria são esterilidade, insensibilidade e indiferença frente às demandas da vida concreta.

Há um retorno de uma “teologia espiritual” na atualidade. Em décadas recentes, uma mudança importante teve lugar na teologia ocidental. A mudança foi de uma teologia meramente dedutiva, local, para uma reflexão séria sobre a vivência de Deus em suas culturas plurais e transreligiosas. Em harmonia com essa mudança, e parcialmente por ela provocados, os entendimentos da vida cristã também mudaram. A “teologia espiritual” que daí emergiu deu lugar a um conceito mais dinâmico e inclusivo sobre a espiritualidade e uma considerável aceitação ecumênica. Assim os estudos sobre ela tendem a se inspirar também na riqueza do diálogo inter-religioso. Por mais ambíguo que pareça, o termo também encontra favor em ambientes não religiosos para descrever os valores mais profundos das pessoas que não professam nenhum sistema de crença.

O nosso tempo é marcado por “perguntas fortes e respostas fracas” (Boaventura de Sousa Santos). Não basta ser tolerante. A tolerância aparece como resposta fraca diante do acolhimento das diferenças. O reconhecimento, mais do que a tolerância, surge como resposta forte às sociedades plurais da contemporaneidade. Reconhecer é dar sentido e legitimidade ao outro. É um ato libertador. Já o tolerar, por mais que se admitem maneiras de pensar, agir e de sentir diferentes das nossas, não é capaz de conferir ao diferente a dignidade que lhe é merecido. Para que o diálogo interfé seja uma realidade concreta, urge a necessidade de reconstrução de uma espiritualidade capaz de promover encontros com denominações religiosas diversas de modo relevante e libertador. Uma verdadeira teologia do reconhecimento.

O Brasil, com toda a sua diversidade religiosa, tem um potencial incrível para encontros micro e macro ecumênicos. A mobilidade religiosa assinalada pelo último senso religioso (IBGE 2010) mostra o quanto a nossa cultura é capaz de articular o religioso com os anseios e necessidades do povo brasileiro. É verdade que há muita intolerância, mas também há movimentos de “princípio ecumênico” (maior que o ecumenismo) conscientes da responsabilidade comum, para além da comunhão entre os cristãos, e que abraça toda a comunidade humana. Fazer uma opção pelo ecumenismo significa assumir uma postura política, uma atitude engajada na busca por um outro mundo possível. Tal escolha testifica a ação do Espírito na vida de quem se deixa ser conduzido pelo vento que sopra onde quer.

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*Carlos Cunha é professor colaborador de Teologia Sistemática no PPG em Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e professor de Ecumenismo e Diálogo inter-religioso no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA).

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