sexta-feira, 30 de junho de 2017

Filhas e filhos por amor

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Na cruz de Jesus Cristo fomos assumidos por Deus como filhos e filhas adotivos, irmãos de Jesus.
Deus ama seu Filho, o homem Jesus crucificado, e Nele ama cada pessoa humana.
Deus ama seu Filho, o homem Jesus crucificado, e Nele ama cada pessoa humana. (Divulgação)
Por Tânia da Silva Mayer*

É Jesus que nos revela que Deus é Pai. A metáfora de Deus como pai não é explorada ao longo da Tradição do Antigo Testamento. A paternidade de Deus só ganha horizonte de sentido a partir da relação que Jesus cultiva com o Pai. Antes de Jesus, Deus é alguém que pode ser chamado de amigo; algumas vezes recebe atributos femininos, tal como o de possuir entranhas; outras vezes prevalece a compreensão de um Deus guerreiro, disposto a combater por seu povo; além disso, compreende-se que Ele é alguém apaixonado, aberto para desposar sua gente; Ele é o libertador e criador, entre outras imagens. Todas elas convivem na experiência que Israel faz de Deus. Tais imagens alimentam a fé e a caminhada do povo, que precisa ser sempre lembrado do cumprimento da Aliança que o Senhor fez com eles: “Eles serão o meu povo e eu serei seu Deus”. Mas a compreensão de que Deus é Pai é alavancada somente pela práxis libertadora de Jesus, o Filho.

A Carta aos Hebreus nos recorda que o interesse de Deus pelo povo foi manifestado pela palavra dos profetas em tempos passados. Eles eram a boca que orientava e exortava o Povo a voltar-se para seu Deus, a partir do rompimento com a idolatria e as injustiças que penalizavam as minorias de Israel. Mas Jesus é o Filho, por meio do qual Deus dirigiu sua palavra nestes tempos derradeiros (Hb 1,1ss). E essa afirmação muda radicalmente a relação humano-divina, ganha ares de maior proximidade e intimidade. Nesse sentido, dizer Deus como Pai só é possível na esteira de outra afirmação: que Ele tem um Filho. Os Evangelhos apresentam a compreensão filial que Jesus possui e que o acompanha em sua missão. Ele realiza o que seu Pai o ordenou; ele e o Pai são um; suas obras e palavras têm a autoridade que recebeu do Pai; ninguém vai ao Pai se não for pelo caminho que Jesus indicar, etc. Deus é familiar a Jesus, pois ele é o Filho Unigênito, herdeiro de todas as coisas e fazedor de tudo o que existe.

Tudo isto descortina para o povo um modo novo de se relacionar com Deus. Precisamente porque rompe com uma compreensão equivocada da figura do pai numa lógica patriarcal, compreensão que mais afasta e divide e que tanto mal fez na nossa experiência de sermos filhos e filhas de nossos pais e do Pai. A narrativa bíblica, que faz memória das ações e palavras de Jesus, nos recorda que a paternidade de Deus consiste na máxima do amor e da bondade que ultrapassam nossa insuficiente resposta filial. Nessa esteira, a parábola do pai que vê seu filho mais novo ir embora da casa com parte da herança nos une irremediavelmente a paternidade de Deus desdobrada em perdão, festa e alegria. Por sua vez, Jesus, o Filho, também ensina-nos que ser filho é ser obediente, isto é, cumprir com a vida o Projeto de edificar o Reino no aqui e agora das existências. A tentação maior é a de negar essa filialidade, sucumbindo diante de outros projetos mais fáceis: “Se és Filho, manda que estas pedras se tornem em pães”. Mas Jesus ensina-nos que a Palavra de Deus é que sustenta nossa obediência filial, que vai, se preciso for, até às últimas consequências: a Cruz.

Nesse horizonte, a Cruz de Jesus Cristo se descortina como cume do ser Filho obediente e como um acontecimento fundamental de fraternidade. Nela Jesus é reconhecido como Filho: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus”. Nela fomos irmanados a Jesus na sua morte e ressurreição. É nela que nós fomos assumidos por Deus como filhos e filhas adotivos, irmãos de Jesus. Precisamente, porque Deus é tão compadecido do sofrimento e da morte de seu Filho, que ele se familiariza dele de maneira suprema, amando-o e batalhando com a morte e o nada para devolver-lhe a vida. Por isso, o teólogo alemão Eberhard Jüngel descreveu a Cruz como um evento de “unidade entre morte e vida, para o proveito da vida”. Ainda, segundo o teólogo, Deus não somente se familiariza com homem Jesus crucificado, envolvendo-o com seu amor, como, ao amá-lo, ama também nossa humanidade dilacerada, dando-nos o direito a uma nova vida. Deus ama seu Filho, o homem Jesus crucificado, e Nele ama cada pessoa humana.

Nesse sentido, é na Cruz de Jesus Cristo que nos tornamos filhos e filhas adotivos, pois somos incluídos na vida nova que o Pai oferta ao seu Filho morto pela maldade humana. Desse modo, o nosso tornar-se filhos e filhas de Deus é compreendido dentro de uma lógica de amor que comunica mais vida e menos morte. Somos filhas e filhos de Deus por causa do amor da Cruz. Amor fraternal de Jesus pelos seus amigos e amigas, amor paternal de Deus que nos assume na humanidade de Jesus. Vivamos, pois, embalados por esse amor que salva, resistindo às tentações contemporâneas que pretendem nos afastar do nosso Irmão, o Mestre de nossas vidas.

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*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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