quinta-feira, 25 de maio de 2017

‘Prometo ser fiel’: casamentos superficiais? Melhor viver juntos?

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Problemas pastorais seriam resolvidos com a perspectiva pré-tridentina sobre o casamento.
O fato de as pessoas estarem casadas de ‘papel passado’ não garante que suas relações sejam, automaticamente, expressão de amor e fidelidade.
O fato de as pessoas estarem casadas de ‘papel passado’ não garante que suas relações sejam, automaticamente, expressão de amor e fidelidade. (Divulgação)
Por Élio Gasda*

Em junho do ano passado, papa Francisco reconheceu um fato que muitos católicos teimam em esconder: por causa do despreparo do casal, a maioria dos matrimônios sacramentais é nula. São casamentos fáceis e mundanos. Muitos se casam por ‘fato social’, pensando nos doces, no jantar, no vestido da noiva. E insinuou: nesses casos, a coabitação pode ser melhor do que casamentos apressados. Nos cursos de noivos, a primeira pergunta deveria ser: “Quantos de vocês já estão vivendo juntos?”. Não seria melhor acompanhá-los, esperar amadurecer o amor que os une?

Francisco não exagerou. As coabitações são comuns. Os casais começam sua vida conjugal antes da cerimônia de casamento. Sua coabitação nupcial pode representar o primeiro passo em sua jornada a caminho do matrimonio. Como integrar o fato da coabitação ao processo de união conjugal?

Graciano, pai do Direito Canônico e um dos maiores juristas da história da Igreja, ensinava que o consentimento apenas é o início do matrimônio; o intercurso sexual o completa (consumatum). Antes do Concílio de Trento, o consentimento podia ser dado tanto no futuro (consensus de futuro) quanto no presente (consensus de presenti). No primeiro tipo, o resultado era chamado de pacto nupcial. O processo da causa (consentimento) ao efeito (pacto nupcial) era chamado sponsalia - o casal tornava-se cônjuge. No segundo tipo, o resultado era chamado de matrimônio. A sequência normalmente aceita do processo era: pacto, coabitação, intercurso sexual, possível fertilidade, casamento. O casal comprometido era legalmente tratado como marido e mulher. O processo de matrimônio começava com a promessa de casamento e era confirmado pela gravidez. Esta sequência foi ofuscada pelo novo processo imposto no Concílio de Trento (1563): noivado, matrimônio, intercurso sexual, procriação.

Papa Francisco acena para um retorno semelhante à sequência pré-tridentina: começa com o pacto nupcial, em que o casal manifesta a promessa de casamento no futuro, abençoado pela comunidade. Esse pacto confere ao casal a condição de cônjuges que coabitariam em um ambiente aprovado pela comunidade para continuar o processo de casamento. A comunidade auxiliaria a aprimorar o relacionamento. Nesse período de ‘catecumenato matrimonial’ pode ocorrer a fertilidade. A maternidade/paternidade é melhor assumida em ambiente de responsabilidade com um terceiro. Chegará um momento em que este casal alcançará níveis de comunhão interpessoal tão profundo que desejará celebrar sua união. É hora de renovar seu consentimento e festejar seu matrimônio.

Abraçar o matrimônio implica comprometer-se a realizar-se sexualmente um por meio do outro e viver em função do amor como projeto de vida. Quem se casa são os cônjuges, são eles os protagonistas da promessa. O contrato é sua expressão legal e o sacramento sua expressão litúrgica. Quem garante seu cumprimento é o testemunho da consciência do casal, apoiado pela sociedade e pelo testemunho da comunidade de fé.

A responsabilidade interpessoal de salvaguardar a promessa é incumbência da ética. Ela interpela a partir da consciência. A ética reflete sobre a qualidade das relações humanas que ocorrem no âmbito da vida conjugal. Alguns comportamentos sexuais cumprem as exigências do amor justo, humanizam a pessoa, logo, são morais; atos sexuais que não cumprem as exigências de humanização do casal são imorais. As relações sexuais, sejam elas conjugais ou extraconjugais, suscitam questões morais. O fato de as pessoas estarem casadas de ‘papel passado’ não garante que suas relações sejam, automaticamente, expressão de amor e fidelidade. O fato de um casal não estar casado na Igreja, não significa que suas relações sejam imorais do ponto de vista ético. O estado civil e orientação afetivo-sexual se tornam questões secundárias.

A ética leva em conta o grau de humanização, o cuidado e o respeito de si e do outro. Amar é um aprendizado. O amor é verdadeiro quando for uma resposta à realidade da pessoa amada, uma união genuína entre aquele que ama e a pessoa amada. Eros e ágape se complementam. Que sejam atos sexuais verdadeiramente humanos que realizem o casal como pessoas e favoreça a comunhão entre elas. Somente um compromisso mais prolongado pode confirmar esse reconhecimento.

O status canônico não é critério exclusivo nem principal para avaliar o intercurso sexual de um casal. Todo ato sexual deve ser considerado em referência às pessoas e seus relacionamentos mais do que aos atos em si. A celebração é um momento. O casamento é um processo. O “sim” dos noivos não é uma palavra mágica, mas a renovação formal do primeiro “sim” iniciado no processo esponsal. A indissolubilidade não é ponto de partida, mas meta. A promessa de “ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando e respeitando até que a morte os separe” continua.

*Élio Gasda: Doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

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