quinta-feira, 16 de março de 2017

PREVIDÊNCIA: DESTRUINDO DIREITOS PARA MANTER PRIVILÉGIOS NO CAMPO

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Para manter os pri­vi­lé­gios fis­cais do la­ti­fúndio, a con­trar­re­forma pro­posta con­di­ciona a pro­teção pre­vi­den­ciária do cam­pe­si­nato a um custo proi­bi­tivo que o ex­pul­sará do INSS.
Por Henrique Judice*
Res­trita, até então, aos em­pre­gados ur­banos não-do­més­ticos, aos pro­fis­si­o­nais li­be­rais e aos fun­ci­o­ná­rios pú­blicos, a co­ber­tura pre­vi­den­ciária foi es­ten­dida em lei aos tra­ba­lha­dores do campo, as­sa­la­ri­ados ou não, pelo go­verno João Gou­lart, em 1963. Antes mesmo que tal de­ter­mi­nação se con­cre­ti­zasse, a di­ta­dura ins­tau­rada em 1964 a tornou letra morta e, a partir de 1971, con­cebeu uma po­lí­tica de mi­séria con­tro­lada ao es­tilo bolsa-fa­mília: apo­sen­ta­doria de meio sa­lário mí­nimo aos 65 anos de idade ou por in­va­lidez, res­trita ao “chefe” da fa­mília, que se pre­sumia ser o homem; pensão por morte de 30% do sa­lário mí­nimo (de­pois, 50%); e au­xílio-fu­neral. Nada mais.
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A As­sem­bleia Cons­ti­tuinte de 1987-88 der­rubou a li­mi­tação de apo­sen­ta­do­rias por fa­mília; re­duziu a idade de acesso a elas para 60 (ho­mens) e 55 anos (mu­lheres); es­tendeu ao campo o sa­lário-ma­ter­ni­dade e os au­xí­lios do­ença, aci­dente e re­clusão; e ins­ti­tuiu o piso de um sa­lário mí­nimo para os pro­ventos.

A pro­posta de con­trar­re­forma as­si­nada pelo as­sa­la­riado do Bank of Ame­rica Hen­rique Mei­relles e en­viada ao Con­gresso por Mi­chel Temer re­verte tudo isso para manter in­tactos os pri­vi­lé­gios fis­cais de la­ti­fun­diá­rios de velho e novo tipo (agroin­dús­trias fi­nan­cei­ri­zadas) que lu­cram em dó­lares e nada pagam à Se­gu­ri­dade So­cial e ao Fisco.
Quem tra­balha, hoje, em pe­quenas ex­ten­sões de terra (pró­prias ou não), so­zinho ou em “mútua de­pen­dência e co­la­bo­ração” com fa­mi­li­ares, sem em­pre­gados per­ma­nentes, é “se­gu­rado es­pe­cial”, com di­reito, uma vez com­pro­vado o tra­balho, a todos os be­ne­fí­cios do INSS no valor mí­nimo, salvo apo­sen­ta­do­rias por tempo de con­tri­buição (comum ou es­pe­cial), que de­pendem de efe­tiva e op­ci­onal con­tri­buição, e sa­lário-fa­mília, pri­va­tivo dos em­pre­gados. Pes­ca­dores ar­te­sa­nais, se­rin­gueiros e ou­tros ex­tra­ti­vistas têm o mesmo en­qua­dra­mento pre­vi­den­ciário e se su­jeitam a iguais cri­té­rios.
O não-con­di­ci­o­na­mento das pres­ta­ções pre­vi­den­ciá­rias dos se­gu­rados es­pe­ciais à efe­tiva con­tri­buição não re­sulta de ca­ri­dade, mas da dis­tinção que o Có­digo Tri­bu­tário Na­ci­onal contém entre con­tri­buinte (quem paga um tri­buto) e res­pon­sável tri­bu­tário (quem res­ponde por ele pe­rante o Es­tado). Se uma em­presa deixa de des­contar e/ou re­passar ao INSS a con­tri­buição pre­vi­den­ciária de um em­pre­gado ou pres­tador de ser­viços, estes tam­pouco dei­xarão de re­ceber be­ne­fí­cios. No caso dos se­gu­rados es­pe­ciais, a res­pon­sa­bi­li­dade pelo des­conto e re­passe é, em regra, de quem compra o que pro­duzem – ou seja, agroin­dús­trias, co­o­pe­ra­tivas e atra­ves­sa­dores (desde que pes­soas ju­rí­dicas).
O “go­verno” Temer quer mudar isso ale­gando que a Pre­vi­dência é de­fi­ci­tária e a ar­re­ca­dação rural é muito in­fe­rior à des­pesa. A pri­meira pre­missa é falsa (1) e a se­gunda é ir­re­le­vante (2), mas não im­porta: há ampla margem para re­duzir o hiato entre exação e gasto no campo. A questão é às custas de quem.
A con­tri­buição dos em­pre­ga­dores ur­banos não-do­més­ticos ao INSS é de 4,5% do fa­tu­ra­mento ou 20% da folha de re­mu­ne­ra­ções (sa­lá­rios e, de­talhe im­por­tante, também pa­ga­mentos a autô­nomos). Já aos em­pre­ga­dores ru­rais (pes­soas fí­sicas ou ju­rí­dicas), a lei impõe con­tri­buição de 2,5% sobre o que fa­turam. Na te­oria, pois, na prá­tica, a mai­oria não paga nada – por sua con­dição de ex­por­ta­dores, que os exime, ou porque vá­rios tri­bu­nais, in­clu­sive o STF, de­claram in­cons­ti­tu­ci­onal a con­tri­buição sobre o fa­tu­ra­mento, criada para subs­ti­tuir a de 20% da folha, sem de­ter­minar a in­ci­dência desta úl­tima, que havia sido subs­ti­tuída por aquela.
Há também uma con­tri­buição des­ti­nada es­pe­ci­fi­ca­mente ao Se­guro de Aci­dentes do Tra­balho (SAT), 
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cuja alí­quota, para os em­pre­ga­dores ur­banos, vai de 0,5% a 6% da folha sa­la­rial. Para os ru­rais, é de 0,1% da re­ceita bruta, sem pro­gres­si­vi­dade, mesmo com as ati­vi­dades agro­pe­cuá­rias de maior peso econô­mico no Brasil (soja, açúcar, fumo, café, milho, carne de boi, porco ou frango) ca­ta­lo­gadas como de risco má­ximo.

É, por­tanto, um im­pe­ra­tivo de jus­tiça impor aos la­ti­fun­diá­rios de velho e novo tipo no mí­nimo os mesmos cri­té­rios dos de­mais em­pre­ga­dores, ainda mais con­si­de­rando que os em­pre­gados ru­rais con­tri­buem como seus con­gê­neres ur­banos (8% a 11% do sa­lário). E é um im­pe­ra­tivo também de ra­ci­o­na­li­dade econô­mica dis­tin­guir os cam­po­neses a quem cabe o en­qua­dra­mento de se­gu­rados es­pe­ciais da­queles que cons­ti­tuem apenas elos da ca­deia pro­du­tiva dos mo­no­pó­lios me­di­ante os con­tratos de in­te­gração da Lei 13.288.
O mí­nimo que esses con­tratos de­ve­riam en­sejar é a in­ci­dência de uma con­tri­buição da em­presa in­te­gra­dora (não só do cam­ponês) sobre o valor da pro­dução ad­qui­rida, no pres­su­posto de que o pro­dutor in­te­grado é um pres­tador de ser­viço à em­presa in­te­gra­dora – isto caso não se pre­fira tratá-lo como em­pre­gado, pois a su­bor­di­nação é in­dis­far­çável. Igual­mente ne­ces­sária é a trans­fe­rência do en­cargo re­la­tivo ao SAT e o au­mento de sua alí­quota no mí­nimo aos ní­veis apli­cados às em­presas ur­banas.
A dis­tinção entre se­gu­rado es­pe­cial e pro­dutor in­te­grado é fun­da­mental para a re­de­fi­nição dessas alí­quotas e também para ca­rac­te­ri­zação de aci­dentes e do­enças do tra­balho e para o ajui­za­mento, pela AGU, das cor­res­pon­dentes ações de re­gresso: os cam­po­neses sub­me­tidos ao re­gime de in­te­gração re­cebem pa­cotes de in­sumos (di­re­ta­mente ou me­di­ante es­pe­ci­fi­ca­ções, ou mesmo me­di­ante im­po­sição de pa­drões e prazos que só são atin­gí­veis me­di­ante aqueles mé­todos e pro­dutos) dos mo­no­pó­lios agroin­dus­triais e não têm como re­chaçá-los. Esses in­sumos (agro­tó­xicos, por exemplo), que são ma­ni­pu­lados in­clu­sive por cri­anças, causam câncer, sui­cí­dios etc., que não são con­ta­bi­li­zados como aci­dente la­boral e, quando são, não acar­retam ônus às em­presas porque os agri­cul­tores não são for­mal­mente em­pre­gados.
To­davia, as “dis­tor­ções e in­con­sis­tên­cias” que Mei­relles alega querer cor­rigir no “fi­nan­ci­a­mento dos be­ne­fí­cios ru­rais” se res­tringem à con­tri­buição dos se­gu­rados es­pe­ciais (2% sobre a venda de sua pro­dução, quando ocorre, mais 0,1% para o SAT). A con­trar­re­forma di­tada pelo Fórum Na­ci­onal subs­ti­tuiria esse cri­tério pelo de pa­ga­mento in­di­vi­dual em carnê todos os meses (hoje, a co­ber­tura pre­vi­den­ciária, de­cor­rendo do tra­balho na la­voura, abrange todos os mem­bros da fa­mília que se de­dicam a ele). Sobre a au­sência de con­tri­buição dos mo­no­pó­lios agroin­dus­triais, até o Banco Itaú já pu­blicou um es­tudo apon­tando a ne­ces­si­dade de revê-la, mas o go­verno diz nada.
Para manter os pri­vi­lé­gios fis­cais do la­ti­fúndio, a con­trar­re­forma pro­posta con­di­ciona a pro­teção pre­vi­den­ciária do cam­pe­si­nato a um custo proi­bi­tivo que o ex­pul­sará do INSS. Res­tará, como única pos­si­bi­li­dade de renda na ter­ceira idade para os tra­ba­lha­dores ru­rais, a As­sis­tência So­cial, que a PEC 287 de­so­briga do piso de um sa­lário mí­nimo.
A pro­posta prevê também a afe­rição do di­reito às pres­ta­ções as­sis­ten­ciais pela “renda in­te­gral”, sem a de­dução, hoje per­mi­tida, de pro­ventos de valor igual ao piso, im­pos­si­bi­li­tando, assim, o pa­ga­mento de mais de um am­paro de ve­lhice por nú­cleo fa­mi­liar. Re­tro­cede-se para aquém do go­verno Mé­dici, já que o re­qui­sito etário dos be­ne­fí­cios as­sis­ten­ciais é am­pliado de 65 para pelo menos 70 anos.
A tran­sição ao ge­ren­ci­a­mento civil do Es­tado bra­si­leiro nos anos 80 foi uma farsa que deu con­ti­nui­dade a todas as mal­fei­to­rias po­lí­tico-ju­rí­dico-ins­ti­tu­ci­o­nais da di­ta­dura de 64 e levou o país a uma de­gra­dação econô­mica e so­cial que nem ela havia per­mi­tido. A pos­sível re­versão do único pro­gresso so­cial efe­tivo ve­ri­fi­cado no bojo de tal tran­sição es­can­cara, a um só tempo, a na­tu­reza e o co­lapso do re­gime dela re­sul­tante.
Notas:
1) Ver, por exemplo, http://​ano​vade​mocr​acia.​com.​br/​no-​171/​6468-​pre​vide​ncia-​as-​men​tira​s-​que-​eles-​te-​contam-​1
2) Ver, por exemplo: http://​ano​vade​mocr​acia.​com.​br/​no-​181/​6755-​pre​vide​ncia-​social-​e-​questao-​agraria-​iii
*Hen­rique Jú­dice Ma­ga­lhães é jor­na­lista, ex-ser­vidor do INSS e pes­qui­sador in­de­pen­dente em Se­gu­ri­dade So­cial. Porto Alegre (RS).
http://www.revistamissoes.org.br/2017/03/atrocidades-e-falacias-na-previdencia-2-destruindo-direitos-para-manter-privilegios-no-campo/

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