sexta-feira, 24 de março de 2017

Os homossexuais, a família e a igreja

domtotal.com
'Você fala com a minha mãe? Você diz a ela que ser homossexual é normal, como ser heterossexual? Eu tenho medo de perder o amor dela' - a dor de ser aceito pela família.
Todas as pessoas, portanto também os homossexuais, são criadas e amadas por Deus.
Todas as pessoas, portanto também os homossexuais, são criadas e amadas por Deus. (Divulgação)
Por Edith Modesto*

No mundo ocidental, a família nuclear – pai, mãe, filhos – é a base do nosso conceito de família, núcleo que, repetido, forma a nossa sociedade. As regras que a organizam, criadas bem antes de nascermos, nos são internalizadas desde o berço.

Uma dessas regras, considerada muito importante, é que todos os seres humanos devem ser heterossexuais, isto é, todos nós devemos nos sentir atraídos sexualmente e afetivamente por pessoas do sexo diferente do nosso.

O imaginário ocidental criou uma “sexualidade natural” para a procriação, uma construção simbólica da única expressão legítima da sexualidade humana, desacreditada ultimamente pelo uso da pílula anticoncepcional. Fica difícil para o ser humano aceitar, mas o primeiro objetivo da relação sexual é a busca do prazer, conforme nos disse Freud, no final do século XIX. Do ponto de vista afetivo, damos prazer a quem amamos e vice-versa, numa troca de afeto, se for um relacionamento duplamente consentido. Todos sabem que essa é a realidade, mas muitos negam isso: ou, por hipocrisia, ou, a maioria, por um contrato de fé, mesmo que racionalmente não faça nenhum sentido. Nas nossas reuniões de pais, muitos deles religiosos, eu pergunto quem se relaciona sexualmente somente com a intenção de ter filhos e todos riem.

Desse modo, no decorrer dos tempos, considerando varias culturas, as reações sociais diante da homossexualidade – atração sexual e afetiva por pessoas do mesmo sexo – variaram, desde a aceitação, a tolerância, até a rejeição. Com o advento do cristianismo, por exemplo, a homossexualidade se tornou, em alguns períodos, um crime passível de pena de morte.

Atualmente, a aceitação social das diferenças de orientação sexual tem evoluído positivamente, com a ajuda das mídias. Mas, de acordo com nossa experiência, no trabalho do GPH[1] e no consultório, o início do processo de aceitação da homossexualidade dos filhos, por seus pais, continua difícil, como vemos nos depoimentos a seguir[2]:

Pai – [...] Choro dia após dia, perco minha concentração, perco meu sono e não quero perder a minha família. Eu e a minha esposa estamos juntos há 27 anos, 21 anos de casados e não quero destruir a minha vida nem a dela. Precisamos de ajuda! [...] (08/11/2016).

Mãe – [...] Sinto uma dor imensa, uma dor física mesmo. Às vezes, eu chego a me arrepender de ter tido o filho que eu tanto desejei. Racionalmente eu sei que não deveria sentir assim e me culpo por isso. Mas é mais forte do que eu... Eu estou desnorteada, me ajuda? Me dá uma luz, uma palavra de conforto. Me ensina a amenizar esse sofrimento, essa dor que me corrói [...] (04/11/2016).

E eu continuo ouvindo a súplica dos jovens, do mesmo modo que há 20 anos:

Jovem (13 anos) – Edith, por favor, me ajuda a ser hétero? Não sei como dizer pra minha mãe uma coisa dessas... (17/01/2017)

A mensagem anterior, entre vários sentidos, derruba a crença de que a homossexualidade é uma “opção”, uma escolha. Tudo indica que a homossexualidade seja uma característica, assim como a heterossexualidade.

Outro exemplo:

Jovem (14 anos) – Você fala com a minha mãe? Você diz a ela que ser homossexual é normal, como ser heterossexual? Eu tenho medo de perder o amor dela [...] (06/02/2017)

Na mensagem, percebemos dois tipos de contratos:

a) Do ponto de vista sociocultural, um contrato moral que está se estabelecendo, uma abordagem social pela qual se tornou politicamente correto respeitar, acolher, essas minorias; b) Do ponto de vista familiar, um contrato ético, abordagem de um ponto de vista existencial, relacionada ao amor dos pais, ao vínculo familiar que dá apoio e acolhimento a seus membros.

Mas isso acontece mais facilmente, se a família não for religiosa! Isso mesmo, se não for, pois, atualmente, a religião é um dos maiores empecilhos para um mais fácil processo de autoaceitação dos jovens e de aceitação da família a um dos seus membros.

Por exemplo:

Mãe (chorando) – [...] Como aceitar meu filho se a minha fé me diz que é pecado? (12/09/2016)

Jovem – Eu fui criado na igreja, cresci dentro dela, é minha segunda família... Não consigo ficar longe dela... Não posso me afastar de Deus... Como vou fazer? (20/03/15)[3]

Jovem –  [...] sou católica e estou me sentindo muito mal porque amo participar da igreja, mas me sinto numa inquisição... Me sinto como mergulhada na hipocrisia por esconder quem realmente eu sou e isso tem me causado muita dor [...] (16/02/2017)

Jovem  – [...] Sempre gostei de participar de retiros, coordeno várias pastorais na minha paróquia, sempre me escondi de mim, fingindo ser quem eu não sou e agora não consigo conciliar as coisas que gritam dentro de mim com a expectativa e exigências das pessoas com as quais convivo. To muito aflita e só consigo sentir ódio de todos de tudo e de todos, cada olhar parece que me condena, mesmo que ninguém saiba que eu sou assim. Esses dias fui a um encontro e a pregadora, que faz parte da Renovação Carismática, falou barbaridades disse que a homossexualidade é uma bestialidade, anormalidade, coisa do demônio, mas ela não sabe as nossas lutas, as nossas dores. Estou me sentindo muito mal desde esse dia. Não consigo me desligar da minha igreja, mas também não consigo conviver lá com essa angústia. Não sei o que faço [...] (17/02/2017)

Essa moça católica permanece na igreja, apesar da opressão que sofre, apesar da violenta exclusão que sente. O Papa Francisco reconheceu isso quando declarou que os cristãos, e especificamente os católicos, deveriam pedir perdão às pessoas homossexuais e que elas não deveriam ser discriminadas.

Como os pais católicos poderão aceitar seus filhos, se a sua religião os condena?

Em “Sabedoria, cap.11, versículos 24, 25 e 26 e capítulo 12, verso 1, está:

Sim, TU amas tudo o que existe, e não desprezas nada do que fizeste; porque, se odiasses alguma coisa não a terias criado. Da mesma forma, poderia alguma coisa existir, se não a tivesses querido? A todos, porém TU tratas com bondade, porque tudo é Teu, Senhor, amigo da vida. O Teu espírito incorruptível está em todas as coisas!

O texto diz que todas as pessoas, portanto também os homossexuais, são criadas e amadas por Deus. Porque há cristãos que duvidam disso?


[1] Grupo de Pais de LGBTs – Grupo coordenado por mães facilitadoras do Brasil todo. Contato: (11) 3031 2106.

[2] Temos licença dos autores para divulgar os depoimentos.

[3] Modesto, Edith. Mãe sempre sabe? Mitos e verdades sobre pais e seus filhos LGBTs. 2ª. ed. ampliada. Campinas. Ed. Papel Social, 2015, p. 38. (www.papelsocial.com.br)

Leia também:

Cristianismo e homossexualidade

Homossexualidade e catolicismo

Diversidade sexual: um dom?

*Edith Modesto é a fundadora do GPH, primeiro grupo de pais de LGBTs do Brasil. Psicanalista, mestra e doutora em semiótica e linguística geral pela USP, há muitos anos se dedica à pesquisa e trabalha com famílias de LGBTs: www.gph.org.br

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