segunda-feira, 27 de março de 2017

Menino com dimensão de fábula

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Sorrindo pois é assim que devemos atravessar o dia. Afinal o menino sabe que sempre existirão lindas espigas maduras no milharal.
O menino corre e às vezes olha para trás. Sempre sorrindo. É um menino de onde?
O menino corre e às vezes olha para trás. Sempre sorrindo. É um menino de onde? (Pixabay)
Por Ricardo Soares

Pintura, retrato, fotograma marcado em delicada película. O menino sorri e atravessa o milharal. As espigas estão no ponto, prometem colheita farta. O menino corre e às vezes olha para trás. Sempre sorrindo. É um menino de onde? Um maronita do interior do Líbano, uma criança remelenta do Piauí, um garoto gordo de Cajuru?
O menino veste uma camiseta azul que contrasta lindamente com o verde do milharal. Tem fôlego de anjo, respiração compassada e corre solto como se um perseguidor querido o espreitasse entre as espigas. Ele não tem pressa em meio a pressa com que corre. Sabe que o futuro está logo ali adiante assim que atravessar a pinguela sobre o rio no qual vai se banhar daqui a pouco.

O milharal fica onde? No caminho que leva de Belém a Hebron? O rio no qual o menino se banha é o Jordão? Ou apenas um afluente do Itapicuru no interior do Maranhão? Aonde levará toda esta imensidão? Às águas amarelas do Solimões, às escuras águas do Rio Negro ou ao imaginário Uraricoera? Serão as águas do Tocantins ou do Araguaia, do Tietê ou do rio Paraíba do Sul?

O menino batiza a si mesmo nestas águas turvas e limpas. O milharal fica dos dois lados das margens onde durante o dia as capivaras nadam e de noite a onça vai beber. Pode ser também as águas do Mekong  ou algum ponto perdido onde passa o rio Danúbio cuja musicalidade inspirou as valsas de Strauss. O que se sabe é que o menino está purificado.

Longe vai o tempo em que Deus resolveu punir o homem. Deus hoje é maior que o temor dos cristãos. Condescendente, absoluto, sábio. Uma criatura que pousa a mão sobre o menino que se banha e sabe que a tez morena dele um dia será vincada pelo tempo. E o menino um dia há de ter longas barbas brancas e à maneira dos profetas haverá de portar um cajado com o qual vai guiar os indecisos entre sinais tão confusos.

O menino está ensopado e sua camiseta azul está colada ao corpo. Ele se senta na margem direita do rio, atira pedrinhas na água e espera que o sol quente seque  seus cabelos, a camiseta e o corpo. O menino tem calor mas pensa em neve. O céu está limpo e ele se deita na areia e passa a contar as poucas nuvens que se formam sobre sua cabeça. Aos nove anos o menino sabe em sua obtusa inocência que hoje é um dia para ser vivido de uma maneira muito especial.

Hoje não existem mais gafanhotos e nenhuma das sete pragas do Egito. O menino não tem que decifrar esfinges, pirâmides, hieróglifos ou múmias. Não tem que saber que Abraão ofereceu seu filho em oferenda nem percorrer os caminhos da  Mesopotâmia. Não precisa aprender a navegar nas canoas do Tapajós ou colher cocos nos altos coqueiros da ilha de Itaparica.

De longe chega um cheiro de comida feita em forno de lenha. Provavelmente pirão de peixe, pão caseiro, angu, rabada, quibe recheado com carne de carneiro. Um cheiro bom. Da lenha e da comida. Comidas tantas, de tantos tempos, espaços e épocas que só fica claro para o menino o tamanho de sua fome. Sua barriguinha - quase milenar? - ronca e ele ri de si próprio. Pena não ter agora um pote de barro para levar água fresquinha para acompanhar a refeição que daqui a pouco há de fazer.

O menino se espreguiça. Lentamente vai se levantando. Sacode a areia do corpo, aspira forte o ar que o rodeia e segue uma porção de galinhas que estão logo ali à sua frente. Entra por uma estreita picada mato adentro onde cigarras fazem o coro das contentes. O menino agora ganha a dimensão de uma fábula e assobia. Tem passarinho ao seu redor que faz o mesmo.

E então o menino chega ao seu destino. Uma casa simples de madeira. A porta está aberta e a mesa está posta. Descobre rápido a origem de todos os aromas. Sorri e lambe os beiços. Os dedos  estalam e ele vai ao tanque lavar as mãos em água fresca e corrente. Não há ninguém na tosca cozinha e ele senta-se à mesa. Começa a se servir quando na janelinha que dá para o fundo do quintal percebe um burrinho que o observa. Estica uma espiga do milharal em direção ao bicho e ri muito alto quando percebe que todo o cenário da manjedoura e do presépio continuam intactos à exceção do burrinho que fugiu para comer a espiga. Deseja a ele e a todos nós um feliz Natal que ainda está longe. Sorrindo pois é assim que devemos atravessar o dia. Afinal o menino sabe que sempre existirão lindas espigas maduras no milharal.

Ricardo Soares é escritor, diretor de tv, roteirista e jornalista. Publicou 7 livros e dirigiu 12 documentários. Em breve lança a novela “ Amor de mãe”.

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