sexta-feira, 17 de março de 2017

Gritaria global

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Enquanto passeio pela internet vou me convencendo de que o tempo de agora é o tempo da comunicação em sua plenitude - e também em sua decadência; tudo simultâneo.
O detalhe do banquinho é quase uma ironia ao melhor estilo britânico.
O detalhe do banquinho é quase uma ironia ao melhor estilo britânico. (Divulgação)
Por Fernando Fabbrini*

Em Londres, passei algumas vezes – movido por curiosidade irresistível - pelo Speakers' Corner. Para quem não o conhece, é um canto marcado na grama do Hyde Park; existe há mais de 150 anos. Ali, qualquer um pode subir num banquinho ou num caixote e soltar as frangas ou os cachorros, falando bem ou mal do que quiser. Trata-se de um palanque a céu aberto, democrático, liberal, versátil e até divertido, dependendo do orador.  

Karl Marx, Lenin e George Orwell foram alguns dos famosos que puseram seus pés naquele reduto. Porém, melhor mesmo é ouvir os anônimos, malucos de passagem, anarquistas, líderes de seitas, místicos, pastores de almas e guardiões solitários de suas próprias verdades. Inflamados, tentam convencer a plateia de desocupados que os escuta - no máximo, por cinco ou dez minutos. E os aplausos, sempre minguados, dependem da retórica e do humor de quem está berrando.

O detalhe do banquinho é quase uma ironia ao melhor estilo britânico. Acessório obrigatório, é exigido porque, sobre ele, o orador “não está com os pés no solo da Inglaterra” e, assim, não está sujeito às leis do país. Pelo que me disseram uma vez num pub, enquanto degustávamos uma Guinness, só é proibido atacar explicitamente a honra da Rainha ou da família real. Se fizer isso, o cara vai em cana - esperneando e gritando até a delegacia mais próxima.

Enquanto passeio pela internet vou me convencendo de que o tempo de agora é o tempo da comunicação em sua plenitude - e também em sua decadência; tudo simultâneo. Com os Facebooks e Twitters da vida à disposição de qualquer mortal, transformamos nossos computadores em Speaker’s Corners globalizados. Estão abertos definitivamente os microfones e alto-falantes para a gritaria global: frases de efeito, piadas, conselhos de autoajuda, asneiras, receitas de bolo, truques tira-manchas, desabafos, indignações, militância política, boatos, mentiras, ódios, amores e saudades. Escuta quem quiser. Retruca e polemiza quem tem tempo e paciência.

Engraçado: pela mesma internet que permitiu a explosão da gritaria democrática é que chegam a nós frases atribuídas a Sigmund Freud, como “o homem é senhor de seu silêncio e escravo de suas palavras”. Ou um velho ditado siciliano: “a melhor palavra é aquela que não dizemos”, além da antiquíssima “o silêncio é de ouro” e a eterna “quem fala muito dá bom dia a cavalo.” Sabemos que o silêncio em momentos críticos pode ser um grande aliado. Uma amiga, cansada de bater boca com o filho adolescente, propôs um pacto temporário: nenhum diálogo até que os nervos se acalmem. A coisa tem funcionado maravilhosamente bem, segundo ela.

Estaremos falando demais e inutilmente? A gritaria globalizada expressa, sim, um direito de todos; porém também retrata o estranho momento vivido pela humanidade. Não seria melhor calar-nos e tentar ouvir os sutilíssimos sons do silêncio, eternizados na bela canção de Simon e Garfunkel? People talking without speaking / people hearing without listening...

Os adeptos da ioga e meditação certamente já experimentaram o exercício que consiste em passar horas – ou dias – sem dar um pio. É fantástico. Tal prática, infelizmente, só é possível em retiros ou seshins, já que nossa rotina insana é rodeada de pessoas que nos perguntam, solicitam e pedem respostas sem cessar.

Há frases e palavras que nos servem na hora exata, são como flechas velozes que atingem o centro do alvo. Porém, na maioria dos casos, no dia a dia, sobram-nos palavras banais que dizemos em função das necessidades. Há outras que deixamos de falar, também em função da conjuntura. E há aquelas que guardamos no coração, que jamais serão verbalizadas, mas que nos consolam pela sintonia perfeita com nosso íntimo. Palavras não ditas contêm nossa verdade solitária, secreta e impossível de ser transmitida dentro dos estreitos limites de um idioma.

O silêncio é um texto fácil de ser lido errado – dizem por aí.

*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com quatro livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.

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