sexta-feira, 10 de março de 2017

Esmola: coração aberto para se doar!

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Simples fato de dar dinheiro a um pedinte não se configura como esmola no sentido cristão.
Esmola é verdadeiro ato de piedade quando se expressa misericórdia pelo sofrimento alheio.
Esmola é verdadeiro ato de piedade quando se expressa misericórdia 
pelo sofrimento alheio. (Divulgação)
Por Jaldemir Vitório*

A palavra “esmola” assumiu conotações negativas, a serem superadas por uma correta compreensão bíblica, teológica e espiritual desse antiquíssimo ato de piedade, considerado pelas religiões como gesto de misericórdia e expressão de fé.

 A visão distorcida pensa quem dá e quem recebe a esmola em relação assimétrica. Quem a dá, é superior a quem a recebe. Quem a pede ou dela necessita, é um pobre coitado, dependente da boa-vontade e do humor alheios. A esmola é uma migalha do que se possui, dada, às vezes, com má vontade.

Assim pensada, a esmola mantém a desigualdade socioeconômica e despoja o necessitado de sua dignidade, pela incapacidade de estabelecer vínculos de verdadeira humanidade entre quem a dá e quem a recebe. Isso é tanto mais verdade, quando a esmola é dada para se livrar do outro “importuno” que, contente com os tostões recebidos, vai-se, deixando em paz quem lhe deu alguns trocados.

 A fé judaico-cristã considera a esmola sob outro viés. A palavra grega eleemosyne, donde vem o vocábulo latino eleemosyna e o português esmola, significa compaixão. A mesma compaixão que os fiéis, na liturgia, imploram a Deus, ao dizerem: Kyrie, eleison – Senhor, tende compaixão! Portanto, a esmola é verdadeiro ato de piedade quando expressa misericórdia por parte de quem se deixou tocar pelo sofrimento alheio e se dispôs a abrir o coração para repartir os bens recebidos de Deus. Em outras palavras, quando o doador age como Deus, em sua imensa ternura pela humanidade. Por conseguinte, o simples fato de dar dinheiro a um pedinte não se configura como esmola, no sentido cristão.

O termo usado por Mateus na bem-aventurança da misericórdia é eleemones, ou seja, ser misericordioso (eleemon) é abrir o coração para repartir (Mt 5,7). Citando duas vezes o profeta Oseias – “Quero misericórdia e não sacrifício” – (Os 6,6; Mt 9,13; 12,7), o evangelista usa o vocábulo eleos, para sublinhar que Deus se compraz com a solidariedade com o próximo necessitado e não com as liturgias sofisticadas de seus adoradores.

A tradição sapiencial bíblica contém excelentes intuições a respeito da esmola, perfeitamente atuais, apesar da distância no tempo e no espaço. Pr 19,17 vincula o necessitado a Deus, de modo que: “Quem é compassivo com o pobre empresta a Deus e ele dará a sua recompensa”. Pr 22,9 afirma: “O homem generoso será abençoado, porque dá de seu pão ao fraco”; Pr 28,27: “Para quem dá ao pobre não há necessidade, mas quem dele esconde seus olhos terá muitas maldições”. O colecionador da sabedoria de Israel no livro do Eclesiástico também insistiu no tema da esmola. Eclo 4,1-6 é uma síntese da misericórdia para com os necessitados, onde um pai, entre outros conselhos, adverte o filho: “Não rejeites o pedinte oprimido, não desvies teu rosto do pobre” (v. 4; cf. 3,30; 7,10; 17,22). Uma apresentação extraordinária do tema bíblico da esmola está em Tb 4,7-11, onde Tobit, estando às portas da morte, adverte o filho Tobias: “Regula tua esmola segundo a abundância de teus bens: se tens muito, dá mais; se tem pouco, dá menos, mas não tenhas receio de dar esmola” (v. 8). Dois elementos importantes servem de pano de fundo da vida virtuosa, na sabedoria bíblica: a liberdade e o desapego diante dos bens que se possui, superando a tentação de absolutizá-los e torná-los verdadeiros ídolos; o cuidado e a atenção com os empobrecidos, na contramão da atitude dos ricos egoístas, descritos nas parábolas de Lc 12,16-21 e 16,19-31.

No evangelho, Jesus ensinou a dar esmola de maneira discreta, sem alardes, para que “a mão esquerda não saiba o que faz a direita” (Mt 6,3). E, mais, “dai o que tendes em esmola e tudo ficará puro para vós” (Lc 11,41). Para combater o materialismo crasso, o Mestre exortava os discípulos apegados ao dinheiro a tomarem uma decisão radical: “Vendei vossos bens e dai esmolas. Fazei bolsas que não fiquem velhas, um tesouro inesgotável nos céus, aonde o ladrão não chega nem a traça rói” (Lc 12,33). Zaqueu é o grande exemplo evangélico de obediência à ordem do Mestre (Lc 19,1-10), contrapondo-se ao homem “muitíssimo rico”, incapaz de partilhar seus bens com os pobres (Lc 18,18-23).

A cena de At 3,1-9 é sugestiva. Ao aleijado de nascença, que pedia esmola diante do Templo de Jerusalém, Pedro oferece mais que dinheiro. Em nome de Jesus, devolve-lhe a capacidade de caminhar e, assim, poder ganhar a vida de outra maneira, com as próprias forças. Tabita, cristã das primeiras comunidades, destacava-se por suas boas obras e a largueza de suas esmolas (At 9,36). Dar esmolas não era exclusividade dos cristãos. Cornélio, centurião romano, “dava muitas esmolas ao povo judeu” (At 10,2.4.31). Preocupado com a situação econômica dos cristãos de Jerusalém, Paulo promoveu uma coleta entre as demais comunidades. Este deveria ser um exercício de cuidado com os irmãos na fé e de generosidade. A orientação do apóstolo era: “Cada um dê como dispôs em seu coração, sem pena nem constrangimento, pois Deus ama a quem dá com alegria” (2Cor 9,7).

A parábola do bom samaritano (Lc 10,29-37), sem dúvida, é a melhor ilustração evangélica a respeito da esmola. Em face ao homem semimorto, jogado à beira da estrada, o viajante, esquecendo seus afazeres, coloca-o no centro de seus cuidados. E partilha com o desconhecido seu óleo, seu vinho, sua montaria, seu tempo e seu dinheiro, numa partilha radical, sem medidas. O dinheiro empregado para salvar aquela vida tornou-se um dos muitos elementos do cuidado pelo outro. E, certamente, não foi o mais importante. Fundamental, mesmo, foi a oferta que o samaritano fez de si a quem carecia de misericórdia, cuja sobrevivência dependia da decisão que tomaria, pois o sacerdote e o levita já o haviam desprezado, por não se deixarem afetar pelo homem vitimado pelos cruéis assaltantes.

A compreensão cristã de esmola vai muito além do simples ato material de dar algo a um necessitado. Tudo depende da atitude que a reveste. O outro é um irmão, em quem reconheço o rosto interpelante de Jesus (Mt 25,40.45), e a quem me doo, com gratuidade e generosidade, no gesto de partilhar, não apenas o dinheiro, mas o que possuo e o irmão necessita para reconstruir sua dignidade. Então, a “esmola” poderá ser um sorriso, um ombro amigo, uma palavra de consolo, um ouvido para escutar, uma companhia solidária ou uma ação para defender o outro aviltado em sua dignidade. Em última análise, para o cristão, dar esmola é doar-se, nos passos do Mestre Jesus de Nazaré, cuja vida foi inteiramente doada, como eleemosyne, pela salvação da humanidade.

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*Jaldemir Vitório é jesuíta, mestre em Sagrada Escritura, pelo Pontifício Instituto Bíblico e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. É autor e organizador de vários livros, dos quais destacamos “A pedagogia na formação - Reflexões para formadores na Vida Religiosa” (Paulinas, 2008).

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