sexta-feira, 17 de março de 2017

Do pó da terra à Ressurreição: caminhando com os personagens quaresmais

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No caminho quaresmal, percebendo o desenrolar da Palavra de Deus e a vivaz presença dos personagens que a emolduram, podemos reconhecer o projeto salvífico de Deus.
'Tronco de Jessé' no vitral de Chartres.
'Tronco de Jessé' no vitral de Chartres. (Vassil)
Por Junior Vasconcelos do Amaral*

O tempo da Quaresma, composto por cinco semanas de preparação para a Páscoa da Ressurreição de Jesus, pode ser considerado um caminho que nos leva do jardim do Éden, da Criação, ao paraíso da Ressurreição de Jesus, ao qual todos estamos destinados pela fé. O tempo quaresmal compreende o período da Quarta-feira de cinzas até a Quinta-feira Santa, pela manhã; a Semana Santa se estende do Domingo de Ramos, entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, até o Domingo de Páscoa, sua gloriosa Ressurreição.

O caminho quaresmal, como um verdadeiro retiro espiritual que fazemos, pode ser auxiliado pelos personagens que entram em cena na liturgia dos domingos, que seguem até o domingo de Ramos, cinco domingos que vão revelando a história salvífica de Deus, desde Adão e Eva até a reanimação de Lázaro e o novo Espírito de vida, concedido por Jesus o Senhor da vida.

No primeiro domingo quaresmal, encontramos no relato de Gn 2, 7-9;3,1-7 o Criador, tal como um artista que modela o homem do pó da terra, do lado do homem (tséla, em hebraico), Deus retira a mulher, sua companheira. Ambos habitam o jardim do Éden. No Evangelho de Mateus (4,1-11), Jesus é tentado do começo ao fim a desistir do projeto amoroso e salvífico, querido por Deus, da mesma forma como Adão e Eva foram tentados pela serpente astuta no paraíso. O Evangelho nos leva a compreensão de que as tentações de Jesus, do prazer, do ter e do poder, bem como tentações que nos circundam cotidianamente, são possíveis de superação. Para superá-las faz-se necessário contar com a graça de Deus.

No segundo domingo da quaresma, nos deparamos com o texto de Gn 12,1-4a e Mt 17,1-9. No primeiro relato, de Gn, encontramos Abraão, o patriarca da fé, que é convidado por Deus a deixar sua terra, sua parentela, e ir para a terra que ele lhe mostrará. Abraão será para sua posteridade uma bênção, um sinal da bondade divina. Em Mateus, testemunhamos com Pedro, Tiago e João a transfiguração de Jesus no monte, lugar da presença de Deus. “Senhor é bom ficarmos aqui” (Mt 17,4), afirma Pedro, contudo faz-se oportuno que possamos ir às pessoas que necessitam, responde-lhe Jesus. Com Pedro, Tiago e João, os três importantes discípulos do mestre Jesus, somos convidados a ouvi-lo, escutá-lo, pois ele é o Filho amado, no qual Deus colocou toda sua afeição (Mt 17,5).

No terceiro domingo, o personagem Moisés se destaca. O libertador dos hebreus cativos no Egito, experimenta a pressão do povo que tem sede: “Por que nos fizestes sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede a nós e a nossos filhos?” (Ex 17,3). Mesmo tendo realizado tantas coisas boas em favor do povo, Moisés é incompreendido. No Evangelho de João (4,5-42), episódio que retrata a chegada de Jesus à Samaria, às redondezas do poço de Jacó, Jesus se depara com uma mulher Samaritana, e lhe pede de beber. A mulher se surpreende com o pedido de Jesus e Jesus lhe diz que ele é a água viva, despertando-a para a fé verdadeira e viva, levando-a a reconhecê-lo Senhor (Kyrios) e Messias (Cristo), convidando-a agora a um culto em Espírito e verdade.

No penúltimo domingo quaresmal, o quarto domingo, somos exortados pela mensagem do profeta Samuel (1 Sm 16, 1b-6;7.10-13a), que unge Davi rei, na presença de seus irmãos, e afirma que daquele momento em diante o Espírito do Senhor se apoderaria de Davi e o conduziria para ser pastor de Israel. Da mesma forma, no Evangelho de João (9,1-41), Jesus, guiado pelo Espírito, liberta o cego de nascença de sua enfermidade, a cegueira. Jesus é a “luz do mundo” (cf. Jo 8,12), que liberta o mundo da falta de fé, da cegueira espiritual. Jesus nos convida assim a segui-lo deixando-nos guiar por sua luz que nos conduz à vida eterna.

No último domingo, o quinto quaresmal, o profeta Ezequiel nos convida a crer que o Senhor põe sobre nós seu Espírito (Ez 37,12-14). O profeta nos leva a crer sempre mais na maravilhosa presença de Deus em nossa vida. Deus quer nossa salvação e sua alegria é nos ver salvos. No Evangelho de João (11,1-45), Jesus se compadece de Lázaro, que jazia na morte há quatro dias. Dirigindo-se a Betânia (“casa dos pobres”, em hebraico), Jesus demonstra sua afeição pela família de Lázaro (Marta e Maria). Jesus desperta Marta, irmã de Lázaro, para a fé na Ressurreição: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim não morrerá mais” (Jo 11,26). Reanimando Lázaro da morte, Jesus nos leva a perceber que a glória de Deus o acompanhava e desta maneira, somos conduzidos à fé nele, o Senhor da Vida. Na reanimação de Lázaro, de maneira teológica, já se descortina o sentido do sinal que Jesus viverá, a Ressurreição. O sinal da reanimação de Lázaro viabiliza a fé dos leitores joaninos ao significado glorioso da Ressurreição de Jesus, que vencerá a morte.

Por fim, no caminho quaresmal, percebendo o desenrolar da Palavra de Deus e a vivaz presença dos personagens que a emolduram, podemos reconhecer o projeto salvífico de Deus: que nos criou do pó da terra, como Adão, por isso somos obra querida da Criação de Deus, ao mesmo tempo somos chamados, como Abraão, a constituir uma nação grande e santa, somos convidados a sair de nosso comodismo e ir ao encontro dos irmãos para com eles somarmos na construção do Reino de Deus; inspirados por Moisés, somos exortados a nos libertar, pela graça e amor de Deus, de toda realidade de pecado e escravidão, crendo, como nos lembra o profeta Ezequiel que o Senhor nos acompanha em todos os caminhos de nossas vidas e que, um dia, poderemos contemplá-lo face a face. Neste caminho salvífico contamos com Jesus de Nazaré, o Filho amado de Deus, que nos inspira com sua presença e Palavra a fim de que vençamos todas as tentações e a contemplar em sua ressurreição nossa ressurreição.

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*Pe. Junior Vasconcelos do Amaral é doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e professor de Sagrada Escritura na PUC Minas.

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