domingo, 31 de julho de 2016

En busca do último lugar

Semana de Teologia, PUC SÃO PAULO, junho 2016

Günther LEMBRADL*
gunter-lembradl
No dia 1 de dezembro de 1916, portanto cem anos atrás, em Tamanrásset, uma cidade da tribo dos Tuaregues no coração do Saara, foi morto o Pe. francês, Carlos de Foucauld, que agora em diante vou chamar simplesmente Ir. Carlos. Ele quis ser irmão de todos. Durante a sua vida ele quis fundar uma congregação, mas morreu sozinho, sem ver o seu projeto realizado. “Se o grão de trigo que cai na terra, não morrer, ficará só, mas se morrer produzirá muito fruto”. (João 12,24). Mais ou menos trinta anos após sua morte, veio a surgir a primeira congregação, os irmãozinhos de Jesus. Hoje ao redor do Ir. Carlos existe uma família espiritual muito numerosa. No dia 13 de novembro de 2005 Ir. Carlos foi declarado beato pelo Papa Bento XVI.

Quem é esta pessoa extraordinária cujo testemunho de vida atraiu tanta gente?

Carlos de Foucauld nasceu em 1858. Com 6 anos de idade era órfão de pai e de mãe. Com 14 anos fez a primeira comunhão e logo em seguida perdeu a fé. Com 28 anos, ele a recuperou. No mês de outubro ele é visto nas Igrejas de Paris rezando. A oração que repetia era: “Meu Deus, se você existir, eu gostaria de conhecê-lo”. No dia 29 ou 30 de outubro de 1886, ele tinha 28 anos de idade, entrou na Igreja de Santo Agostinho para pedir aulas de religião. O padre “Abbé Huvelin” o mandou ajoelhar e confessar. Logo depois lhe deu a santa comunhão. Carlos sai da Igreja tendo reencontrado a fé. Ele escreveu: “Logo que tinha a certeza de que Deus existe, só pude viver para ele”. Começa uma vida nova.

Charles de Foucauld
Numa homilia do Pe. Huvelin, ele escuta uma frase que iria “gravar-se indelevelmente em minha alma”, como afirmou. “Jesus tomou de tal maneira o último lugar que ninguém jamais pôde tirá-lo daqui.”

A partir de então Ir. Carlos inicia a aventura do seguimento de Jesus Cristo, a descida para o último lugar. Tema da minha colocação.
A pedido do Pe. Huvelin, que se tornou o seu guia espiritual, Ir. Carlos faz uma peregrinação para a Terra Santa. Ele chegou a Nazaré. Lá ele se defrontou com “a existência humilde e obscura do divino carpinteiro da Nazaré”. Ele descobriu o seu chamado: Viver a vida de Jesus de Nazaré. Mais tarde ele medita longamente sobre as palavras do Evangelho de Lucas. “Ele desceu com eles para Nazaré e lhes era submisso”. (Lc.2,51). “Vós descestes com eles (os pais) para viver, como eles viviam, a vida dos pobres artesãos, que vivem do próprio trabalho em Nazaré”. Ainda trinta anos após a sua conversão em 1916, ano de sua morte, Ir. Carlos medita em Tamanrasset: “Ele desceu com eles e foi para Nazaré: por toda a sua vida. Ele só desceu, desceu ao encarnar-se, desceu ao fazer-se filho, desceu ao obedecer, desceu ao fazer-se pobre, abandonado, exilado, perseguido, supliciado, ao colocar-se sempre no último lugar”. Buscar o último lugar para Ir. Carlos é o resumo de sua vontade em seguir Jesus Cristo. Aqui há uma intuição central da fé do Ir. Carlos, profundamente de acordo com o coração da revelação cristã.

Ir. Carlos tem a intuição de que ele encontra o último lugar no seguimento da vida de Jesus em Nazaré. Trinta anos de vida escondida, de trabalhador, desprezada. Natanael ao saber que Jesus é de Nazaré só sabe exclamar: “De Nazaré pode sair alguma coisa que presta”? (João 1,46)

Nazaré era uma cidade rejeitada, impura, pagã, sem importância, obscura e desconhecida. Não tinha história, referências, importância; não tinha voz. Foi em Nazaré que Jesus viveu trinta longos anos de vida escondida, sua infância, adolescência, sua juventude. Aqui ele entendeu o seu chamado, aqui encontrou a sua vocação, aqui amadureceu o projeto de sua vida.

A pergunta que Ir. Carlos se fez: como encontrar este último lugar? A busca deste último lugar leva Ir. Carlos primeiro para o Mosteiro da trapa. “Restava-me entrar na Ordem onde eu encontrasse a imitação mais exata de Jesus…sua vida privada de humildade e pobre artesão de Nazaré”. Em 1890, com 32 anos de idade ele entra no Mosteiro “Notre-Dame des Neiges”, com a previsão de ser enviado para uma nova fundação em Akbés na Síria. Ele escreve: “Por que entrei na trapa? Por amor, por puro amor…amo Nosso Senhor Jesus Cristo, embora com um coração que gostaria amar mais e melhor, mas, enfim, eu o amo e não posso suportar viver uma vida diferente da sua, uma vida doce e honrada quando a Dele foi a mais dura e desdenhada que jamais houve”. Mas a saudade de Nazaré não tardou. Na trapa não encontrou o que estava buscando, a sua inspiração profunda. “Aqui somos pobres na opinião dos ricos; não somos pobres como Nosso Senhor era…quanta diferença entre essa casa (de um morador do lugar) e as nossas moradas! Suspiro por Nazaré”.

Após sete anos de monge trapista e antes de fazer os votos perpétuos Ir. Carlos recebe a permissão de deixar a trapa, para viver a vida de Jesus em Nazaré. Ir. Carlos deixa a Trapa e vai para Nazaré. Lá ele fica num convento de Irmãs Clarissas. Durante três anos mora numa casinha dois por dois metros, para ler, rezar, meditar no silêncio e ao abrigo da clausura. Durante este tempo de deserto amadurece em Ir. Carlos uma nova convicção. Viver “a vida de Nazaré, minha vocação, não na Terra Santa tão amada, mas entre as almas mais doentes, as ovelhas mais desamparadas”. Seu pensamento volta á sua juventude quando percorreu Argélia como soldado e Marrocos como explorador, os dois países que somam dez milhões de habitantes, não havia nenhum padre no interior.

Em 1900 ele deixa Nazaré volta para França, se prepara para a ordenação sacerdotal. Em 09/06/1901 com 43 anos de idade, ele é ordenado padre pelo bispo da diocese de Viviers na França. A pergunta que Ir. Carlos se faz agora: Mas ir para onde? “É preciso ir não onde a terra é mais santa, mas onde as almas têm maior necessidade”. “Como nenhum povo me parecia mais abandonado do que esse, solicitei e obtive a permissão do prefeito apostólico do Saara de instalar-me no Saara argelino”. Foi em Beni Abbés,(1901) oásis mais próximo da fronteira marroquina, que Ir. Carlos foi construir seu eremitério. Em Beni Abbés Ir. Carlos é confrontado de transformar a sua vida monacal em vida de missionário. ”Não seguirei essa tendência, pois acredito que estaria sendo muito infiel a Deus, que me deu a vocação de vida reservada e silenciosa e não a do homem de palavras”. Fiel à sua vocação não queria viver outra vida senão essa imitação de Jesus de Nazaré, que era a sua vocação.

Ir. Carlos escolheu Beni Abbés pensando de ter encontrado o último lugar possível, mas esse último lugar o esperava ainda dois mil quilômetros no sul, no Hoggar, no coração do deserto do Saara. Numa carta seu amigo general Laperrine contou-lhe de uma mulher tuaregue que recolheu na sua casa e cuidou dos soldados franceses feridos numa batalha e não permitiu o seu extermínio. Desde então Ir. Carlos sentiu-se ser chamado para conhecer esta senhora no Hoggar. “Sinto calafrios, tenho vergonha em deixar Beni Abbés, de deixar a calma ao pé do altar para me lançar em viagens pelas quais tenho agora um horror tremendo… Apesar do que a razão opõe… sinto-me extremamente e cada vez mais impelido interiormente a viajar”. A razão porque Ir. Carlos quer ir para o Hoggar: “Vejo essas vastas regiões sem um padre, vejo-me o único padre que pode ir até lá”. Seu bispo, de início reticente, permitiu finalmente que Ir. Carlos partisse. Ao cabo de quatro meses de extenuantes caminhadas pelo deserto, ele chegou ao Hoggar em maio de 1904. Ir. Carlos agora tem 46 anos de idade. Foi uma nova etapa que ele encarou mais do que nunca, à luz de Jesus de Nazaré. “Escolhi Tamanrasset, povoado de vinte lares, em plena montanha no coração do Hoggar e dos Dag Rali, sua principal tribo. Escolhi esse lugar abandonado e nele me fixei e onde quero durante a minha vida, tomar por único exemplo a vida de Jesus em Nazaré”.

Em Beni Abbés Ir. Carlos ainda quis viver a vida monástica “um tipo de eremitério, humilde e pequeno…numa estreita clausura, na penitência e na adoração do Santíssimo Sacramento, não saindo do claustro” agora chegado em Tamanrasset (1905 com 47 anos de idade)ele mudou de ideia e se dá uma nova regra. “Tome como objetivo…levar a vida de Nazaré, em tudo e por tudo…nada de hábito como Jesus em Nazaré, nada de clausura como Jesus em Nazaré, nada de casas longe de lugares habitados, mas perto de um povoado como Jesus de Nazaré”. Para construir o seu eremitério não procurou um lugar solitário, como em Beni Abbés, mas, ao contrário um lugar acessível a todos. Ir. Carlos agora quer viver um apostolado de amizade. “Ao me verem, as pessoas devem dizer: Sendo esse homem tão bom, sua religião deve ser boa”.

Os anos passavam Ir. Carlos continuou seu caminho de descer para o último lugar, “sinto-me cada vez mais escondido e perdido como Jesus em Nazaré”. E como Jesus e com Jesus ele quer ser salvador. Para ser salvador “é preciso passar pelo sofrimento, pelo fracasso aparente, pela morte”.

No fim de sua vida Ir. Carlos se identifica com Jesus “Não somos mais nós que vivemos, mas Ele que vive em nós. Nossos atos não são mais atos nossos, atos humanos e deploráveis, mas são Dele, divinamente eficientes”. Como Jesus ele quer entregar a sua vida por amor. “Ninguém tem maior amor, do que aquele que dá a sua vida por seus amigos (João 15, 13)…desejo de todo o meu coração dar a minha vida por Vós”.

Este desejo se realiza. No dia 1 de dezembro de 1916 um grupo de Tuaregues rebeldes saqueou o eremitério, aonde Ir. Carlos se tinha retirado. Ele ficou sendo amarrado e vigiado por um rapaz de quinze anos. Num momento de pânico este rapaz ficou nervoso e atirou a queima-roupa em seu prisioneiro, que morreu na hora.

“Jesus tomou de tal maneira o último lugar que ninguém jamais pôde tirá-lo daqui.” Esta palavra marcou toda a vida de Ir. Carlos.

O último lugar

E nós? Aspirar ao último lugar para nós é um valor? Na nossa sociedade se presencia o contrário. A lei hoje é “Subir na vida a todo custo, conquistar um lugar ao sol, ser importante, sair da miséria”. Subir só pode quem está no chão, quem experimentou a dureza da miséria, quem tem fome de alguma coisa, quem ainda não encontrou a vida. Descer só pode quem já tem uma vida cheia; cheia de amor e de misericórdia, como Jesus Cristo que “estando na forma de Deus, mas renunciou ao direito de ser tratado como Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo e tomou a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens. E sendo encontrado na figura de homem, rebaixou-se ainda mais, fazendo-se obediente até a morte, à morte de cruz”. (Fil.2,5ss). O último lugar não é um lugar já definido e pronto, que alguém pode escolher, mas é a opção de vida de alguém de abandonar-se nas mãos de Deus, deixar guiar-se por ele. Ao último lugar se chega após uma longa caminhada de descer. Buscar o último lugar é para gente corajosa que não tem medo de enfrentar aventuras.

Falei que a lei de nossa sociedade é subir na vida. Esta luta acontece não apenas na sociedade cívica, mas também na nossa Igreja. O Papa Francisco o denunciou na carta Evangelii Gaudium (A alegria do Evangelho) o mundanismo religioso que “busca em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal”. Este obscuro mundanismo manifesta-se em muitas atitudes. “Há um cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina, e do prestígio da Igreja” “encerra-se em grupos de elite” Dentro do povo de Deus, quantas ”guerras por inveja e ciúmes”, “busca pelo poder, prestígio, prazer ou segurança econômica e carreirismo” (EA 93-101).

Lembro-me, quando cursava o quarto ano de primário a nossa professora fez a cada um de nós a pergunta: “O que você quer ser na vida?” Um quis ser médico, outro quis ser motorista de caminhão, outro quis ser professor, outro quis ser advogado. Eu não me lembro de o que eu quis ser, mas nunca mais esqueci a resposta de um menino: “eu quero ser gari, varredor de rua”. Foi uma gargalhada só. Quando cheguei ao Brasil em 1967, conheci os irmãozinhos de Jesus, congregação que segue a espiritualidade de Ir. Carlos, que moravam numa periferia de Santo André. Guido, era padre, trabalhava como metalúrgico. Serafim tinha absolvido o estudo de música e era pianista, trabalhava como metalúrgico, Chico que era médico trabalhava como servente de pedreiro. Mais tarde encontrei em Manila nas Filipinas outro irmãozinho de Jesus, era professor da Universidade, depois que ingressou na Congregação dos irmãozinhos, virou vendedor de picolé. Os estudantes que o conheciam como professor vendo-o agora com seu carrinho de picolé, achavam que enlouqueceu. Como um médico, um professor universitário pode fazer isto? A resposta é: eles não se tornaram servente e vendedor de picolé porque são profissões tão atraentes, mas “por causa de Jesus e do seu evangelho” levaram a sério a palavra de Jesus: “Se alguém quer servir a mim, que me siga. E onde eu estiver, aí também estará o meu servo”. (João 12,26).

*gunter-lembradlGünther LEMBRADL,
fraternidade do Brasil

Para preparar esta colocação utilizei o livro:
Charles de Foucauld, Nos passos de Jesus de Nazaré
Editora Cidade Nova 2004
Escrito por
Irmãzinha Annie de Jesus

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