quinta-feira, 30 de abril de 2015

Biografia de um homem comum

A história de meu pai resume a vida de milhões de imigrante que chegaram ao Brasil fugindo da miséria.

Disponível 24 horas por dia durante todo o ano, ele trabalhava em troca de cama e comida.
Por Luiz Ruffato*
Graças ao vereador Vinícius Machado, a principal rua do bairro São Marcos, em Cataguases, minha cidade-natal, tornou-se rua Sebastião Cândido de Souza, nome do meu pai. No próximo dia 9, em Lugo, comunidade autônoma da Galiza, na Espanha, recebo uma honraria, Escritor Galego Universal, juntando-me a nomes como o palestino Mahmoud Darwish, a mexicana Elena Poniatowska, o argentino Juan Gelman e a portuguesa Lidia Jorge. Ambos os fatos, que muito me lisonjeiam, embora separados no tempo e no espaço, talvez sejam frutos da mesma árvore.
A biografia de meu pai resume e exemplifica o desdobramento da vida de milhões de imigrantes pobres que chegaram ao Brasil fugindo da miséria em seus países de origem – assim como a da minha mãe, filha de italianos da região do Vêneto, norte da Itália. Sebastião nasceu em Guidoval, uma pequena cidade da Zona da Mata de Minas Gerais, região já decadente em 1928, que conhecera, em menos de meio século, o apogeu e o ocaso da cultura do café. Meu avô faleceu, não se sabe de quê, ainda durante a gravidez de minha avó, que por sua vez morreu pouco depois do parto. Órfão e sem parentes, meu pai foi pego para criar por uma família italiana, em Dona Eusébia.
O agregado, figura singular da estrutura social brasileira, crescia como se fosse membro da família, embora arcasse apenas com deveres, nunca usufruindo de quaisquer direitos. Disponível 24 horas por dia durante todo o ano, trabalhava em troca de cama e comida – comida servida na cozinha e cama posta num quartinho do lado de fora. Além disso, como soldava fortes laços afetivos com a casa, tornava-se de inteira confiança para desempenhar serviços os mais diversos. Assim ocorreu com meu pai: desde cedo ele labutou, inicialmente como pajem das crianças, algumas de sua idade, mais tarde puxando enxada no eito. Quando se casou, aos 22 anos, carregava nos olhos uma gratidão quase cega aos irmãos e irmãs postiços, que sempre nos trataram com educado desprezo, e as mãos vazias.
A saúde frágil – teve quase todas as doenças sociais possíveis, de paratifo a tuberculose – não o impediu de sonhar um futuro radioso para os filhos. Com minha mãe, mudou-se para Cataguases, cidade de economia baseada na indústria têxtil, onde, insubmisso à sua maneira, não conseguiu adaptar-se a horários fixos e patrões. A breves períodos como empregado assalariado na construção civil, sucediam-se longas tentativas frustradas de estabelecer-se com negócios próprios, quase sempre empreendimentos modestos e banais. Lembro-me de alguns, uma barraquinha de caldo de cana e pastel, uma quitanda de frutas e verduras, um armazém, um fabrico artesanal de salgadinhos, outro de doces, até firmar-se, por um tempo mais alargado, como pipoqueiro da praça da igreja-matriz.
Desencantado com os ensinamentos católicos, ainda no começo da década de 1970 bandeou-se para o neopentecostalismo – primeiro, entrou para a Igreja do Evangelho Quadrangular, mas logo desentendeu-se com o pastor e após zanzar de denominação em denominação filiou-se à Igreja Presbiteriana Maranata, onde chegou a diácono. Otimista, creio que arrastava consigo poucos dissabores, apesar da vida atribulada – as mortes de meu irmão, em 1978, e do meu sobrinho, em 1980; uma nunca explicada cisma com os Ruffato, com os quais mantinha uma silenciosa hostilidade; o desgosto por não lograr converter ninguém da família para sua nova confissão.
Quando paro para pensar de onde vieram os pais de meu pai, uma grande noite antiga se entremostra. No entanto, posso transformar essa lacuna em vantagem – o que não sei, invento
Em 2001, com a perda inesperada de minha mãe, sua companheira por meio século, meu pai começou a se despedir também. Ele, que havia vencido a solidão e o desamparo na infância, que driblara diversas vezes a morte, que superara percalços financeiros, que suplantara humilhações e indiferenças, sucumbiria, dois anos mais, ao desânimo de um coração cansado. Assim, anonimamente, desaparecia o homem, franzino e enfermiço, que cruzava a cidade de ponta a ponta, sempre os ouvidos propensos à escuta, sempre os braços dispostos ao aconchego, sempre os bolsos abarrotados de boas palavras – a linguagem do corpo às vezes é remédio. Hoje, meu pai é um nome na lápide do cemitério de Rodeiro – e agora, também, na placa de rua de um bairro de Cataguases.
Mas quando paro para pensar de onde vieram os pais de meu pai – ou seja, em que história me ancoro – uma grande noite antiga se entremostra. Não restaram fotografias, documentos, memórias, nada daquilo que nos fornece o estatuto de existir no mundo. No entanto, posso transformar essa lacuna em vantagem – o que não sei, invento. Meu avô chamava-se João Cândido Frutuoso, minha avó Maria de Souza Ferreira. A tradição portuguesa exige na composição dos sobrenomes o apelido materno seguido do paterno – assim, meu pai deveria ter sido batizado Sebastião Ferreira Frutuoso. Porém, no registro de nascimento está consignado Sebastião Cândido de Souza – o apelido paterno seguido do materno, que é da tradição espanhola (e galega...)
Por fim, creio que, muito mais que a mim, assumo o título de Escritor Galego Universal, concedido pela Asociación de Escritoras e Escritores Galegos em Lingua Galega (AELG), como uma espécie de homenagem póstuma a meu pai, que, embora não tenha deixado nada escrito, pautou sua vida pelo compromisso ético na defesa da dignidade humana, premissa perseguida pelos organizadores do prêmio. Meu pai, contador de histórias, meu pai, talvez galego, meu pai, profundamente.
*Luiz Ruffato é escritor e cronista o El País

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